Ruy de Carvalho em  palco no dia do 96.º aniversário, com a peça A Ratoeira.
Ruy de Carvalho em palco no dia do 96.º aniversário, com a peça A Ratoeira. Igor Martins / Global Imagens

Ruy de Carvalho aos 98 anos, uma vida à boca de cena

Estreou-se, aos 15 anos, sob a direção de Ribeirinho e desde então não mais parou. Falamos de Ruy de Carvalho que aos 98 anos (faz este sábado), se mantém ativo e dedicado à sua profissão.
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Imagine o leitor que vai ao teatro e que, por qualquer circunstância, sua ou da sala, não consegue ver bem o que se passa em cena. Ainda assim, há um ator que entra e o teatro acontece, mal a sua voz se eleva do palco e preenche todo o espaço. Fá-lo não apenas pela capacidade de projeção, mas sobretudo pela beleza do timbre e pela riqueza expressiva com que transporta o público para outros mundos. Se assim for, saiba que há uma forte probabilidade de esse ator ser Ruy de Carvalho.

Esta foi a sensação que tive quando, adolescente ainda, fui ao Dona Maria II ver a primeira peça adulta da minha vida de espectadora: Mãe Coragem e seus Filhos, de Brecht, encenada por João Lourenço. Tantos anos depois, a sensação repete-se na presença do homem que amanhã, dia 1, completa 98 anos, o que provavelmente faz dele o decano dos atores em atividade no mundo inteiro.

Para Ruy, o pano subiu na Rua da Costa do Castelo, em Lisboa, a 1 de março de 1927. É filho do oficial do exército João Pires de Carvalho e de Aida Augusta Pires de Carvalho, pianista formada por Vianna da Mota. Dos quatro irmãos mais velhos (filhos dos primeiros casamentos dos pais), dois foram atores: João Almeida, que morreu muito novo, e Maria Cristina, que conquistou popularidade como membro do grupo Parodiantes de Lisboa. Em entrevista ao DNA, em 1998 (como veremos, o ano em que interpreta o papel com que sonhara toda a vida, o de Rei Lear, de Shakespeare), Ruy evocava desta forma os pais, decisivos na sua formação: “(…) O meu pai ia muito ao teatro (…) era muito teatreiro, era amigo de atores e músicos. Quando acabaram as bandas de música dos regimentos de infantaria ele protestou vivamente contra isso. Dizia se nós não temos armas, ao menos tenhamos música.” Sobre a mãe, Ruy lembrava o amor que esta dedicava ao seu piano vertical, que a acompanhava para todo o lado, mesmo quando a família partiu para Angola, onde o marido foi colocado durante quatro anos.

Educado neste meio, o jovem iniciou a sua carreira como amador em 1942, no grupo da Mocidade Portuguesa, numa peça encenada por aquele que consideraria ser o seu mestre, Francisco Ribeiro, popularmente conhecido por Ribeirinho, na peça O Jogo Para o Natal de Cristo. Seria, aliás, graças ao incentivo de Ribeirinho que decidiu inscrever-se no Conservatório Nacional, que frequentou entre 1945 e 1950, tendo como colegas toda uma geração de ouro do Teatro Português, em que se destacam Canto e Castro, Armando Cortez, Fernanda Montemor ou Fernanda Borsatti. A estreia como profissional aconteceu em 1947, no Teatro Nacional Dona Maria II, numa peça de Roger Ferdinand, Rapazes de Hoje.

Mas o jovem não se demoraria na Companhia de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Em breve, voltaria a trabalhar sob a direção de Ribeirinho, para ingressar na Companhia de Teatro do Povo, um grupo que fez História quer pela qualidade do repertório, quer pela pedagogia que procurava fazer, levando o teatro a pontos do país onde a arte, qualquer que ela fosse, dificilmente chegava.

Também na década de 1950, Ruy de Carvalho faria a sua primeira incursão no cinema, no filme Eram Duzentos Irmãos (1952), de Armando Vieira Pinto, estreando-se também nas noites de teatro da RTP, inauguradas, logo em 1957, com Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente. Foi ainda fundador do Teatro Moderno de Lisboa, grupo a que pertenceu até 1963, quando se mudou para o norte do país para assumir a direção artística do Teatro Experimental do Porto.

Mas este ator que muitos de nós associamos a Shakespeare, Brecht ou Tchekov, deu boa conta de si, quando fez teatro comercial (e até cantou e dançou comédias musicais) na Companhia de Vasco Morgado, quase sempre em contracena com Laura Alves, no palco do desaparecido Teatro Monumental.

O regresso ao TNDM II aconteceria já no pós 25 de Abril, quando, em 1977, passou a fazer parte do elenco residente, onde permaneceu até 2000, quase sempre como protagonista (ou co-protagonista) das peças que interpretou como O Alfageme de Santarém, de Garrett; Felizmente há Luar, de Sttau Monteiro, As Alegres Comadres de Windsor, de Shakespeare; As Três Irmãs, de Tchekov; O Judeu, de Bernardo Santareno; Rómulo, o Grande, de Durenmatt, ou Passa por mim no Rossio, de Filipe La Féria. Na velha casa de Garrett, cumpriria ainda o sonho antigo de encarnar Rei Lear, a partir de Shakespeare, peça integrada nas comemorações dos 150 anos do TNDMII e dos 50 anos da carreira de ator.

Apesar do êxito, dois anos depois o ator ver-se-ia dispensado, o que lhe causou muita mágoa como assumiria no livro-entrevista de Palmira Correia, Ruy de Carvalho, o grande senhor do teatro: “Mandaram-me embora por eu ser reformado e velho. Por isso, estou fora do Teatro Nacional à espera de ser jubilado (...) Fui eu, a Eunice Munoz e a Fernanda Borsatti - nenhum de nós voltou ao Teatro Nacional.”

Não obstante essa mágoa e as perdas dolorosas (como a da sua mulher de toda a vida, Ruth de Carvalho em 2007), o ator não parou. Divide-se entre cinema, televisão e teatro. Ainda em 2024, com 96 anos, apresentou Ruy, a história devida (a acompanhar uma exposição fotográfica sobre a sua vida, no âmbito do projeto de Nélson Mateus, Retratos Contados) e percorreu vários teatros do país com o espetáculo A Ratoeira, de Agatha Christie. De Ruy de Carvalho não se espere, pois, uma saída pela esquerda baixa. Como dizia numa entrevista ao DN em 2009: “Sou um ator de bengala. Daqueles que estão em palco até morrer.”

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