Imagine o leitor que vai ao teatro e que, por qualquer circunstância, sua ou da sala, não consegue ver bem o que se passa em cena. Ainda assim, há um ator que entra e o teatro acontece, mal a sua voz se eleva do palco e preenche todo o espaço. Fá-lo não apenas pela capacidade de projeção, mas sobretudo pela beleza do timbre e pela riqueza expressiva com que transporta o público para outros mundos. Se assim for, saiba que há uma forte probabilidade de esse ator ser Ruy de Carvalho.Esta foi a sensação que tive quando, adolescente ainda, fui ao Dona Maria II ver a primeira peça adulta da minha vida de espectadora: Mãe Coragem e seus Filhos, de Brecht, encenada por João Lourenço. Tantos anos depois, a sensação repete-se na presença do homem que amanhã, dia 1, completa 98 anos, o que provavelmente faz dele o decano dos atores em atividade no mundo inteiro.Para Ruy, o pano subiu na Rua da Costa do Castelo, em Lisboa, a 1 de março de 1927. É filho do oficial do exército João Pires de Carvalho e de Aida Augusta Pires de Carvalho, pianista formada por Vianna da Mota. Dos quatro irmãos mais velhos (filhos dos primeiros casamentos dos pais), dois foram atores: João Almeida, que morreu muito novo, e Maria Cristina, que conquistou popularidade como membro do grupo Parodiantes de Lisboa. Em entrevista ao DNA, em 1998 (como veremos, o ano em que interpreta o papel com que sonhara toda a vida, o de Rei Lear, de Shakespeare), Ruy evocava desta forma os pais, decisivos na sua formação: “(…) O meu pai ia muito ao teatro (…) era muito teatreiro, era amigo de atores e músicos. Quando acabaram as bandas de música dos regimentos de infantaria ele protestou vivamente contra isso. Dizia se nós não temos armas, ao menos tenhamos música.” Sobre a mãe, Ruy lembrava o amor que esta dedicava ao seu piano vertical, que a acompanhava para todo o lado, mesmo quando a família partiu para Angola, onde o marido foi colocado durante quatro anos.Educado neste meio, o jovem iniciou a sua carreira como amador em 1942, no grupo da Mocidade Portuguesa, numa peça encenada por aquele que consideraria ser o seu mestre, Francisco Ribeiro, popularmente conhecido por Ribeirinho, na peça O Jogo Para o Natal de Cristo. Seria, aliás, graças ao incentivo de Ribeirinho que decidiu inscrever-se no Conservatório Nacional, que frequentou entre 1945 e 1950, tendo como colegas toda uma geração de ouro do Teatro Português, em que se destacam Canto e Castro, Armando Cortez, Fernanda Montemor ou Fernanda Borsatti. A estreia como profissional aconteceu em 1947, no Teatro Nacional Dona Maria II, numa peça de Roger Ferdinand, Rapazes de Hoje. Mas o jovem não se demoraria na Companhia de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Em breve, voltaria a trabalhar sob a direção de Ribeirinho, para ingressar na Companhia de Teatro do Povo, um grupo que fez História quer pela qualidade do repertório, quer pela pedagogia que procurava fazer, levando o teatro a pontos do país onde a arte, qualquer que ela fosse, dificilmente chegava.Também na década de 1950, Ruy de Carvalho faria a sua primeira incursão no cinema, no filme Eram Duzentos Irmãos (1952), de Armando Vieira Pinto, estreando-se também nas noites de teatro da RTP, inauguradas, logo em 1957, com Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente. Foi ainda fundador do Teatro Moderno de Lisboa, grupo a que pertenceu até 1963, quando se mudou para o norte do país para assumir a direção artística do Teatro Experimental do Porto.Mas este ator que muitos de nós associamos a Shakespeare, Brecht ou Tchekov, deu boa conta de si, quando fez teatro comercial (e até cantou e dançou comédias musicais) na Companhia de Vasco Morgado, quase sempre em contracena com Laura Alves, no palco do desaparecido Teatro Monumental.O regresso ao TNDM II aconteceria já no pós 25 de Abril, quando, em 1977, passou a fazer parte do elenco residente, onde permaneceu até 2000, quase sempre como protagonista (ou co-protagonista) das peças que interpretou como O Alfageme de Santarém, de Garrett; Felizmente há Luar, de Sttau Monteiro, As Alegres Comadres de Windsor, de Shakespeare; As Três Irmãs, de Tchekov; O Judeu, de Bernardo Santareno; Rómulo, o Grande, de Durenmatt, ou Passa por mim no Rossio, de Filipe La Féria. Na velha casa de Garrett, cumpriria ainda o sonho antigo de encarnar Rei Lear, a partir de Shakespeare, peça integrada nas comemorações dos 150 anos do TNDMII e dos 50 anos da carreira de ator. Apesar do êxito, dois anos depois o ator ver-se-ia dispensado, o que lhe causou muita mágoa como assumiria no livro-entrevista de Palmira Correia, Ruy de Carvalho, o grande senhor do teatro: “Mandaram-me embora por eu ser reformado e velho. Por isso, estou fora do Teatro Nacional à espera de ser jubilado (...) Fui eu, a Eunice Munoz e a Fernanda Borsatti - nenhum de nós voltou ao Teatro Nacional.”Não obstante essa mágoa e as perdas dolorosas (como a da sua mulher de toda a vida, Ruth de Carvalho em 2007), o ator não parou. Divide-se entre cinema, televisão e teatro. Ainda em 2024, com 96 anos, apresentou Ruy, a história devida (a acompanhar uma exposição fotográfica sobre a sua vida, no âmbito do projeto de Nélson Mateus, Retratos Contados) e percorreu vários teatros do país com o espetáculo A Ratoeira, de Agatha Christie. De Ruy de Carvalho não se espere, pois, uma saída pela esquerda baixa. Como dizia numa entrevista ao DN em 2009: “Sou um ator de bengala. Daqueles que estão em palco até morrer.”