Rowlands, Cassavetes, whisky e cigarros

Com <em>Noite de Estreia</em>, John Cassavetes concretizou a expressão do teatro que estava presente na sua obra desde <em>Sombras</em>. <em>Opening Night</em> está agora em cena no palco do Trindade.
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"Todos os dramaturgos escrevem peças sobre si mesmos. Tu escreveste uma peça sobre envelhecer. Eu não tenho a tua idade." As palavras de Myrtle (Gena Rowlands), uma atriz em paranoia, revelam a mulher que atravessa uma crise existencial. Sem papas na língua, ela diz a Sarah (Joan Blondell), a autora da peça The Second Woman, porque é que não consegue vestir a pele de Virginia, a personagem deprimente, com afrontamentos, que lhe foi incumbida e que todos acham que encaixa no seu perfil. "Não estou na menopausa." Mas enquanto Sarah lhe pergunta, uma, duas, três vezes que idade tem, o silêncio impera. Só acende um cigarro. Talvez seja difícil admitir que já não se tem 18 anos.

Esta conversa entre atriz e dramaturga acontece em Noite de Estreia (1977), de John Cassavetes, o título que assume a teatralidade de quase todos os filmes assinados pelo realizador e ator americano - desde o primeiro, Sombras (1958), inspirado num exercício de interpretação que passou aos seus alunos de teatro. Rowlands, a esposa dele na vida real e musa no grande ecrã, é essa atriz que entra numa espiral de resistência ao papel que lhe pode limitar a carreira. Se fizer de "velha", o público vai aceitá-la assim e está tudo acabado. Mas é justamente por mostrá-la em luta consigo própria - inclusive criando na imaginação dela uma outra personagem jovem - que Cassavetes consegue arrancar-lhe uma assombrosa interpretação o tempo todo. É ver a sua linguagem corporal, a forma como a madeixa loira lhe cai sobre o rosto quando acende cigarros e bebe whisky. É ver como ele, que em Noite de Estreia é o ator que faz de marido de Virginia na peça, baralha as fronteiras entre o palco, a realidade do filme e a realidade de vida. Uma peça de teatro dentro de um filme, um filme com a estrutura à vista que põe o espectador a refletir sobre o seu próprio lugar.

Nessa tendência de retratar personagens que não se sentem bem na sua pele, para além da estranheza das relações, Cassavetes, o cineasta que recusava a palavra "entretenimento" associada aos seus filmes, fez um cinema que mexe com a mente do espectador, tirando-o da zona de conforto desde o primeiro plano. Não é por acaso que, quando Noite de Estreia começa já algo vai a meio. Somos atirados para o decorrer da ação e aprendemos a nadar num universo fílmico - e teatral - observando a bela Gena/Myrtle/Virginia a afogar-se em drama e álcool. Tudo magnífico no ecrã. Como será num palco verdadeiro? Uma coisa é certa: não teremos os olhos tristes de Rowlands e o seu abandono total à performance. O filme será sempre esta outra coisa.

Das dificuldades financeiras à escolha dos atores (Cassavetes queria que tivesse sido Bette Davis a interpretar a dramaturga), a produção de Noite de Estreia foi tão complexa como quase tudo o que acontece na ficção. A um mês do fim da rodagem já não havia dinheiro. E apesar de isso significar que o realizador não tinha condições de pagar a todos os que trabalharam no projeto, ninguém abandonou o barco. Pelo contrário: a união da equipa que se vê lá para o final de Opening Night é a mesma que se vivia naquela rodagem. O cinema, o teatro e a vida são um só.

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