Há pouco tivemos Billie Holiday, agora é a vez de Aretha Franklin. A tendência para contar a vida das grandes vozes femininas afro-americanas acompanha o espírito do tempo. No caso desta primeira longa-metragem de Liesl Tommy, realizadora com uma curta experiência de televisão, há um dado importante: a escolha da protagonista vem de trás e foi feita pela própria Aretha. A descoberta deu-se em 2007, quando Jennifer Hudson venceu o Óscar pela sua interpretação em Dreamgirls, de Bill Condon..Franklin decidiu aí que queria que fosse ela o seu rosto e voz no cinema, e esteve envolvida na produção do filme até à morte, em 2018. O resultado, mesmo que superficial em quase duas horas e meia, faz-nos reconhecer a preferência da rainha da soul: há uma "verdade" em Hudson que segura o arco narrativo de Respect, embora não faça milagres..Como não podia deixar de ser, nos termos de um biopic convencional, esse arco narrativo vai da infância ao momento mais alto da carreira de Aretha Franklin. Vemo-la logo no início, uma criança (interpretada por Skye Dakota Turner), a levantar-se da cama e descer as escadas para presentear com o seu vozeirão precoce um grupo de amigos do pai, o ilustre pastor baptista C.L. Franklin (um irrepreensível Forest Whitaker). É uma entrada que, por si só, diz muito sobre o significado da figura paterna no percurso dela; alguém que encorajou o seu talento, nomeadamente apresentando-a como solista na igreja, mas que também quis controlar cada passo da sua vida profissional e íntima. A libertação de Aretha deste jugo masculino, que se estendeu ao primeiro marido, é parte do recado feminista do filme. .Estamos muito longe do cenário de infância miserável de Billie Holiday, mas não estamos assim tão longe dos fantasmas que podem marcar a infância. A maternidade de Aretha aos 12 anos, que Liesl Tommy aborda num breve flashback, para além da morte da mãe, Barbara Franklin, a quem puxou a aptidão musical, são "instantes" de Respect que tentam desenhar a ideia de um desamparo silencioso, qualquer coisa que atuou dentro dela e que se terá refletido na voz, ou no modo como as letras das canções, através da sua voz, ganham alma..O que mirra a alma do filme, porém, é a sua insistência em semear frases o mais cliché possível, estilo autoajuda ("a música vai salvar-te a vida"), sublinhando-se os "demónios" que a cantora teria dentro dela... Digamos que o espectador não precisa desta pouco sofisticada sinalética verbal para entrar na essência dos anos de definição artística de Franklin, sem esquecer que a prestação de Jennifer Hudson sofre com essas debilidades de um argumento genérico, que acaba por ficar à mercê dos temas musicais, relegando para pano de fundo, por exemplo, as referências ao movimento dos direitos civis, Martin Luther King e Angela Davis. O contexto histórico não existe para além de uma falsificação estética de imagens documentais..Com a sua fórmula rotineira, o biopic assume-se aqui numa expressão respeitosa e higiénica, mas não totalmente coerente. E isso sente-se perto do fim. Depois de nove álbuns sem êxito assinalável, da transição de Aretha da Columbia Records para a Atlantic Records, que a fez encontrar a nota certa com uma banda em Muscle Shoals, e da estabilidade de um segundo relacionamento amoroso, livre das más energias do anterior, surge, sem suporte lógico nesta ordem, uma fase de perdição alcoólica da cantora... Fica-se com a nítida sensação de que era preciso, por protocolo do filme biográfico, a certa altura, embutir uma cena com o ícone da música devidamente desgrenhado, emocionalmente feito em cacos e entregue ao consolo da bebida. Não bate a bota com a perdigota..Mas a seguir vem a "redenção" com Amazing Grace - que se tornou, recorde-se, o mais vendido álbum de gospel -, duas noites de gravação na New Temple Missionary Baptist Church de Los Angeles, em 1972, a trazer uma espécie de reconciliação entre Aretha e o pai, e sobretudo a representar o regresso dela às suas origens religiosas, bilhete de identidade musical que lhe valeu o mais estrondoso sucesso. O tão almejado sucesso, como o filme não se cansa de enfatizar. .A propósito desta última sequência de Respect, vale a pena lembrar o registo documental propriamente dito. Esse que tinha ficado na gaveta cerca de 40 anos, devido a um obstáculo técnico de sincronização do som com a imagem, que à época inviabilizou a sua existência enquanto objeto fílmico acabado, e que Alan Elliott recuperou com o título do álbum, Amazing Grace. Trata-se de um documento precioso, o testemunho de um momento hipnótico, de absoluto êxtase e comunhão, captados pela equipa do cineasta Sydney Pollack - por mais que tente, Respect não tem maneira de nos fazer sentir o suor e as lágrimas dentro daquela igreja como esse filme lançado em 2018. Daí que seja uma excelente adenda à perspetiva ficcional..Hudson a cantar a diva Franklin, sem cair no abismo da imitação, é o que dá a Respect uma dignidade para lá do ar sensaborão da narrativa, em jeito de homenagem simples e terna. É difícil dizer se chega a ter alma, mas é verdade que também ela mete respeito quando usa o aparelho vocal.