Resgatar o cinema mudo de Rino Lupo
Figura singular do cinema mudo em Portugal, o italiano Rino Lupo é objeto de um documentário que procura dá-lo a conhecer, entre a raridade dos seus dados biográficos e a pura paixão pela sétima arte.
O nome de Rino Lupo (1884-1936) tem vindo a ser resgatado da prateleira onde a história do cinema português o colocou. Primeiro foram as edições em DVD da Cinemateca, que lançou em 2017 uma caixa com os dois primeiros títulos da produção deste italiano em Portugal - Mulheres da Beira e Os Lobos -, e agora chega às salas o documentário Lupo, que segue os passos da sua figura enigmática, misturando o impulso detectivesco com um olhar sobre o estado atual do cinema (mais concretamente, o desaparecimento das salas).
De olhos postos no mapa, para assinalar as várias cidades por onde passou o cineasta italiano, o documentário de Pedro Lino vai traçando o percurso geográfico da sua narrativa, ao mesmo tempo que revela o perfil errante e aventureiro de Lupo. Nascido em Roma, começou por fazer carreira em Paris, Berlim, Copenhaga, Moscovo e foi em Varsóvia que ouviu falar de Portugal, um país quente, por contraste com a Europa do Leste, que auspiciava ser o lugar ideal para mais um recomeço. Chegou ao Porto em 1921, com toda esta bagagem internacional, e aí conseguiu convencer os estúdios da Invicta Film a confiarem-lhe um projeto de realização. Chamou-se Mulheres da Beira e saiu da burocrática infraestrutura do estúdio para a rua, à procura da paisagem rural do país e da espontaneidade dos atores - algo que se desviava sobremaneira dos padrões de produção dessa altura.
O espírito livre e curioso, tanto no cinema como na vida, valeu-lhe a desconfiança dos seus pares, que não estavam habituados a nada que fugisse ao "rigor" de um guião, orçamento e prazos. Apesar disso, ou precisamente por isso, Rino Lupo conseguiu deixar uma marca forte na cinematografia muda portuguesa: não só continuou a filmar por conta própria, à sua maneira (Os Lobos, de 1923, foi o filme seguinte), como fundou escolas de representação em Lisboa e no Porto, ele que tinha sido ator nos países onde antes trabalhara. Casou com uma portuguesa, Aida de Oliveira (que se tornou Aida Lupo), atriz nas suas produções, mas ao se interrogar sobre ele a geração descendente desse matrimónio, uma certa bruma teima em não se dissipar. A ideia vaga desta personagem sobrepõe-se a qualquer registo ou facto.
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Esses, os factos, descortinam-se aqui e ali. Entre os mais interessantes da cultura popular conta-se a estreia de Manoel de Oliveira no grande ecrã, com um papel secundário num dos seus filmes comercialmente espertos, Fátima Milagrosa (1928) - experiência de que Oliveira nunca se orgulhou -, mas também a descoberta de uma espevitada Beatriz Costa, cujo charme não escapou ao faro do cineasta ladino, que a lançou em O Diabo em Lisboa (1928). Depois deste, em terras lusas, só fez José do Telhado (1929).
Ao calcorrear momentos da vida profissional de Lupo, o documentário acaba por ir dar à génese de tudo: a genuína paixão pelo cinema. E aí Pedro Lino cruza muito bem a memória deste cinema mudo com a atual extinção das salas escuras, as ruínas do passado de uma experiência coletiva que, apesar disso, luta para sobreviver nos dias de hoje. Veja-se, por exemplo, o projecionista ambulante aqui entrevistado - qual Philippe Noiret do Cinema Paraíso -, que leva o cinema às aldeias num ato simultâneo de generosidade e gosto pessoal: "Eu vibro com as pessoas, bato palmas com elas, choro com elas, amo com elas e também sofro com elas", diz.
Com um tom entre o informal e o epistolar, Lupo, o documentário, revela a agilidade e inteligência necessárias para abordar a biografia desta figura sui generis, sem cair na formatação do retrato-documento. Não há nada que se torne pesado: nem o olhar sobre o seu pioneirismo no cinema português, nem a nostalgia que reverbera nas salas de cinema fechadas. Lupo soube imbuir-se da alma entusiasta do italiano e procurar a sua identidade misteriosa, quanto mais não seja, no grão das películas.
*** Bom