'Reagan'. Retalhos da vida de um presidente
Era uma vez um menino de uma cidadezinha americana em nenhures que viria a ser presidente dos EUA. A história de Ronald Reagan não dava um filme mas a Hollywood mais conservadora, em ano de eleições, tem uma obra assumidamente republicana para prestar homenagem ao 40.º presidente norte-americano.
Sean McNamara faz o chamado endorsement ao legado de Ronnie e assume o biopic hagiográfico em toda a essência. Temos então um Ronald Reagan da infância à velhice em modo fofinho e com as convenções de conforto ao espectador todas balizadas. Mostra-se o homem, mas empola-se sobretudo o líder. No meio disso, retrato de uma América dos anos 1980, entre a explosão da economia e a profusão do orgulho do capitalismo.
Um certo heroísmo americano
Saímos da sala de cinema a perceber que McNamara quer plantar a ideia de que Reagan era um herói. Se não formos na conversa, ficamos com a certeza de que a sua presidência era um mar de rosas ao lado do rasto de Donald Trump. Outros tempos, outra comunicação, mesmo quando há a tónica de que se tratava de um americano com alergia extrema ao comunismo. Um anti-comunista assumido que, ironicamente, fica para a História por ter encetado um diálogo pacifista com a União Soviética e ter sido o responsável pela sua queda. A tese deste argumento é que o cowboy Reagan foi referenciado por um espião do Kremlin desde os tempos de Hollywood quando foi líder sindical dos atores. Um espião que, agora retirado, conta a um futuro líder russo toda a vida de Reagan.
Uma vida marcada por ter sido baleado à saída de um hotel, se ter divorciado e conhecido a fiel atriz Nancy e se ter reinventado perante o fracasso como ator de série B.
Dennis Quaid faz o que pode com uma personagem com pouca espessura, mesmo quando acerta nos maneirismos e no tom de figura cabotina. Trata-se de uma composição respeitosa, pronta a dar a respeitabilidade que o objeto pretendia. Ele e Penelope Ann Miller, como Nancy Reagan, dão a dignidade qb ao projeto. Em boa verdade, Reagan cumpre na sua desenvoltura narrativa, com um ou outro flashback a tresandar a lugar comum, mas, aqui e ali, até com um humor funcional, em especial na forma como o presidente reagia às mortes sucessivas dos seus homólogos soviéticos (Robert Davi na pele de Brejnev é ridiculamente caricatural). Outra das fragilidades evidentes é a forma involuntariamente cómica como se descreve o poder no Kremlin durante a Guerra Fria: reuniões sinistras com muito tabaco em salas escuras, autêntico sonho molhado para imperialista com lavagem cerebral. Em todos os momentos, este é um panfleto de uma visão pura do orgulho americano. Fica no ar essa pergunta: o que é ser americano de gema (neste caso, com sangue irlandês)?
Para quem tem a curiosidade de perceber como o cinema americano enfrenta as suas lições de História, Reagan é um bom caso de estudo. Curiosamente, é menos truculento na última metade: quando deixa para trás a vida de ator e sindicalista e aposta nas incidências do presidente cowboy na política externa, em particular nos encontros com Gorbachev e Thatcher.
Como um filme cristão...
O facto de ter havido um marketing muito dirigido nos EUA aquando do lançamento deste título acaba por remeter para a sua verdadeira estratégia política. O seu sucesso interessante nas bilheteiras faz lembrar os sucessos dos filmes cristãos dos estúdios Angel. Ou a prova de que há um novo público alvo para os executivos de Hollywood. Um público que parece saudosista de cinema travestido de telefilme da Hallmark, um público sem exigências de escala de produção - nota-se nos cenários e nos erros de maquilhagem que o orçamento não terá sido abonado.