E não é que, por um azar dos azares dos Távoras, pinaram os pífaros ao Rão Kyao? Graças a Deus, ou aos deuses, pois Rão é homem de policrenças, o saco com as suas flautas acabou sendo entregue na Esquadra da Polícia do Estoril, após ter desaparecido na véspera, dia 11 de Outubro, no parque de estacionamento da Praia de São Pedro, em circunstâncias que se ignoram. Até a carteira lhe devolveram, intacta, com o os documentos e o guito todo, e ele, claro, ficou “eufórico, agradecido e emocionado”, garante a sua assessora de imprensa - e mostra-o uma foto dele, todo contente, cita ao site raokyaoficial..É claro, e como é óbvio, que Rão Kyao não nasceu com esse nome, pois nenhuma mãe com juízo assim baptiza um menino. É difícil, contudo, saber por que é que escolheu tal designativo, artístico, decerto, mas um tudo nada esquisito, devendo dizer-se que Rão, ou melhor João Maria Centeno Gorjão Jorge, nado em Lisboa aos 23 de Agosto de 1947, é senhor de belíssimas estirpes, muito tingidas de azul. Segundo dos três filhos de José Duarte Ramos Ortigão Jorge e de sua primeira mulher, Maria Carlota Centeno Gorjão Henriques, Rão Kyao/João Maria descende, pelo lado paterno, do escritor Ramalho Ortigão e do médico Ricardo Jorge, do instituto com o mesmo nome; e, pelo lado materno, é da família dos viscondes da Abrigada, dos condes de Oliveira dos Arcos, dos condes de Rio Maior, dos viscondes da Baía, e, por essas vias, descendente ainda do marquês de Pombal..Pelo ramo Gorjão, que ao que parece remonta a um francês Jean Gorgeon, que no século XIV veio para Portugal e morreu em Torres Vedras, o autor de Fado Bailado tem por antepassados um escrivão da Casa da Suplicação, feito cavaleiro em Tânger, um moço de câmara de D. João III, e, por fim, mas não por último, uma trineta de Luís Henriques, que combateu em Aljubarrota e foi monteiro-mor de D. João I (cf. Com as artes na família, Diário de Notícias, 13/10/2007)..Sangue muito azul e bélico, portanto, em tudo alheio ao ardente amor pela paz e pela não-violência que Rão Kyao tem cultivado ao longo da sua existência, e que ainda há pouco foi espraiado numa conversa que manteve com Lia Pereira, para o podcast Blitz Posto Emissor, edição de 16 de Maio de 2022, na qual falou, inter allia, da música e dos recitais que dedicou a Gandhi, por ocasião do 150.º aniversário deste e no âmbito de uma coisa chamada Bap@150..Tendo ficado órfão de mãe muito novo, com 7 anos, e como a segunda mulher do pai, Rosa Silvestre Correia, era amiga de Amália e tinha ligações ao teatro, conheceu, ainda miúdo, os meios artísticos da capital, sendo visita de casa da diva, que homenageou bastas vezes..Os seus avós, por outro lado, eram vizinhos e amigos de uma grande cantora lírica e professora de canto, Elsa Penchi Levy, e, pela sua mão, Rão começou a cantar em criança, em rearranjos de óperas que Elsa fazia, datando daí a sua primeira aparição televisiva, nos primórdios do pequeno ecrã..A primeira vez que viu alguém tocar uma flauta foi num filme português antigo, de Vasco Santana ou de António Silva, numa cena campestre e bucólica, imagem de serenidade que o marcou muitíssimo e que ainda persiste até hoje: foi por ela, entre outras, que acabou por escolher os instrumentos de sopro, a flauta e o saxofone (mais tarde, dedicou-se apenas à primeira, abandonando o segundo)..Na adolescência, estudou no Colégio Militar, experiência que obviamente não apreciou, e ainda hoje recorda os trágicos jantares de domingo à noite, antes de o pai o levar para o Colégio, onde esteve durante três anos. Depois, matriculou-se em Direito, um pouco por pressão paterna, curso em que foi colega de Marcelo Rebelo de Sousa, Leonor Beleza e Carlos Fino (deste, já nem lembramos a pancada apanhada do KGB em Moscovo, Julho de 82), mas que não chegou a concluir, porque, nessa altura, já andava com a cabeça toda na música, estudando flauta de bambu, saxofone, teoria musical e solfejo com o saxofonista Vítor Santos, músico da Banda da Armada, onde chegou até sargento-mor, e futuro professor do Conservatório de Lisboa..Estreou-se a tocar ao vivo com 19 anos, actuou muito novo em vários clubes de Lisboa e pelo mundo fora, da Dinamarca ao Japão, passando pela Índia ou pelo Canadá. Em 1965, passou a tocar em público e, no Hot Clube de Portugal, partilhou o palco com nomes grandes do jazz, como Don Byas, Dexter Gordon, Pony Poindexter ou Ian Carr..Por razões lá da sua vida, fixou-se em França, meados/finais dos Anos 1960, princípios dos Anos 1970, é foi aí que recebeu o 25 de Abril (além de se ter iniciado nos trinados étnicos de origem africana e asiática)..Vítor Higgs / DN.Em 1976, passou a adoptar o nome Rão Kyao, escolhido sem significado especial, apenas pela sonoridade (“Rão” era uma alcunha que o acompanhava desde criança, pois assim o tratava o irmão mais novo, trocando “João” por “Rão”; já o Kyao foi dado por uma cantora amiga, e mais não sabemos)..Depois foi para Oriente, tornando-se o rosto mais conhecido, em Portugal, da moda ou vaga dos “loucos pela Índia”, título de um livro de Régis Airault que retrata o fascínio insano que o Oriente exerceu - e, em parte, ainda exerce - sobre uma geração de jovens europeus ou americanos, sedentos de evasão e escapismo, o que os levou a “fazer o caminho”, tantas vezes sem regresso (cf. Loucos pela Índia. Delírios de ocidentais e sentimento oceânico, Via Optima, 2006)..Das várias viagens que Rão Kyao fez à Índia, desde finais dos Anos 1970, resultou, entre outros, o álbum Goa, editado em 1979. No ano anterior, e na sequência da sua participação no Festival Internacional de Música Jazz Yatra, em Bombaim, decidiu fixar-se nessa cidade, onde estudou flauta de bambu (Bansuri) e música indiana com o célebre mestre Raghunath Seth, autor de muitas músicas para cinema e para mais de duas mil séries e documentários televisivos e cuja Music to help you sleep, do álbum Nidra, tem mais de 5,5 milhões de visualizações no YouTube..Em 1983, Fado Bailado, o disco que lhe deu estatuto mítico, mas cuja génese Rão Kyao tem dificuldade em explicar, dizendo apenas que “foi acontecendo”, fruto de uma singular mescla de jazz, de fado e de sonoridades orientais. O disco, ao que parece, surgiu de um desafio de Luís Pedro Fonseca, feito ao jantar. No dia seguinte, estavam nos Estúdios Rádio Triunfo a gravar, com António Chainho (guitarra portuguesa), José Maria Nóbrega (viola), Celso de Carvalho (contrabaixo) e Siegfried Sugg (acordeão)..Não tendo sido um disco muito promovido pela editora, tornou-se um êxito graças ao passa-palavra: de repente, sem que se saiba bem como e porquê, Portugal entrou em levitação e em modo zen, porventura para se esquecer do negrume daqueles tempos agrestes, marcados pelo segundo choque petrolífero, pelo empréstimo externo do FMI, por greves e por mil protestos, pelo despontar do terrorismo (assassinato de Sartawi em Montechoro, atentado à Embaixada da Turquia, FP-25) e, como se não bastasse, pela aparição da sida..Politicamente, Rão revê-se na revolução de Abril, mas lamenta que, com ela, tenham sido “deitadas ao lixo verdadeiras obras-primas da música nacional”, acrescentando que “antes o 25 de Abril, nós tínhamos uma música portuguesa verdadeiramente extraordinária, que a gente não vê hoje, nem nada que se pareça.”.Na sua música, diz, tenta reproduzir os caminhos trilhados pelos navegadores portugueses de Quinhentos, do Brasil à Índia, passando por Cabo Verde ou Macau. Considera, aliás, que os portugueses “não têm consciência histórica” (Diário de Notícias, 29/2/2008) e, resvalando um pouco em estereótipos luso-tropicalistas, não tem pejo em afirmar que somos um povo particularmente dado ao convívio e à miscigenação com os outros, exemplo que ele procura seguir na música e na vida, tendo gravado e actuado nas sete partidas do mundo com colegas das mais diversas origens e feitios: anglo-saxónicos do jazz, mestres hindus, brasileiros e espanhóis, grupos de cante alentejano, chineses e macaenses, árabes e marroquinos, um melting pot completo..Esteve no primeiro Rock in Rio lisboeta, na cerimónia dos 450 anos da chegada dos portugueses a Macau e na da transição deste território para a soberania chinesa, actuou várias vezes na Índia e no Brasil, gravou com a Orquestra Chinesa de Macau, musicou a peça A Real Caçada ao Sol, de Peter Shaffer, a convite de Carlos Avillez, e para o Teatro D. Maria II..Apesar de ter sido um precursor, entre nós, da world music, não gosta muito dessa designação, nem mesmo, parece, do conceito de “música de fusão”, que indiscutivelmente pratica, absorvendo sonoridades que vão da música tradicional portuguesa (v.g., no álbum Viagens na Minha Terra) ao Oriente mais extremo (por ex., Porto Interior, de 2008, ou as suites Casas de Macau, de 2013), trinados árabes (Fado Virado a Nascente, 2001), música meditativa (The Music of Sound - Musical Suite For Bamboo Flute and Processed Sounds, com o pseudónimo Shrivad Pani, 1999; Earth & Wings - Healing Dance Journey, de 2016) ou fado (Fado Bailado, claro, mas também Em’Cantado, CD duplo de 2009)..Nas entrevistas, raramente fala de si, dificultando a vida aos que tentam biografar a sua. Prefere, ao invés, discorrer sobre a música, com frases belas, profundas, que deixam esmagados os interlocutores, como sucedeu à jornalista Cláudia Almeida, que, no programa Filhos da Nação, de 30/5/2017, foi esmagada em breves minutos por tiradas como “a música é uma viagem interior”, “a música dá mobilidade à nossa alma” (“essa frase é grande, Rão Kyao”, retorquiu ela), “toda a música deve-se ouvir de uma necessidade solitária”, “a missão da música é passar qualquer coisa da nossa alma cá para fora”, “só começa a haver fado quando a alma passa cá para fora”. A seguir, falou de gnomos, fadas, duendes, das florestas da Atlântida, coisas do arco da velha, situadas acima, muito acima, das tricas e dos dichotes que frequentemente caracterizam os depoimentos das gentes da arte e do espectáculo. Humilde e simples, considera que “a música é a voz de Deus”, acredita “numa realidade superior que nos modela e nos atira para tudo aquilo que é bom” e, por ocasião do centenário das aparições de Fátima, gravou um depoimento dizendo que “Nossa Senhora está no nosso coração.”.De resto, tem gravado cânticos religiosos portugueses (Sopro de Vida - Ao Ritmo da Liturgia, de 2011), editou em 2012 Melodias Franciscanas, com temas do Padre Mário Silva, e, mais recentemente, em Novembro de 2014, gravou na Capela do Convento de Santa Teresa de Jesus, em Lisboa, o CD Sopro de Vida - Maria, apresentado ao Papa aquando da sua visita à Batalha, em 2017..Em 2007, recebeu a Ordem do Infante D. Henrique e, três anos depois, foi condecorado pela Société Académique des Arts, Sciences et Lettres de Paris. Garante que não é anti-social, e que até vai semanalmente cantar à Mesa de Frades, mas diz que prefere o campo à cidade e gosta muito da Natureza (e dos animais). Hoje com 76 anos, é um homem de paz e em paz, pois teve a inteligência e o engenho, quiçá talvez a sorte, de viver longe, bem longe, das misérias da política e dos desastres do quotidiano pátrio. Caso para dizer: que inveja. Escreve de acordo com a antiga ortografia.