O seu livro Erva, o mais recente a ser publicado em Portugal, aborda o tema das chamadas “mulheres de conforto”, que é muito dramático na história da Coreia do Sul e de outros países ocupados pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. É também um tema atual, pois as últimas sobreviventes continuam a exigir justiça. Qual foi a sua grande motivação para este Erva?Em todos os meus trabalhos falo sobre as mulheres. As personagens principais são sempre mulheres. Porque através das histórias íntimas de uma mulher, ou de várias mulheres, gostaria de contar também a história universal. O que me interessou foi Lee Ok-sun, quis contar a história de sofrimento de Lee Ok-sun, personagem principal de Erva. Ela nasceu na mesma época dos meus pais. E a minha mãe já me contara um pouco o que se passou também na sua aldeia naquela época, nos anos 1930 e 1940. Também houve lá mulheres forçadas a partir para a guerra. Eu queria falar sobre as razões, durante este período, que obrigaram tantas mulheres a sair das suas aldeias. Queria falar sobre a sociedade falocrática. As mulheres que foram obrigadas a sofrer a violência da sociedade em tempo de guerra. Porque é que estas mulheres foram obrigadas a partir e a viver como escravas naquela época? Queria falar de vários pontos de vista. Do das mulheres, primeiro que tudo. Porque, muitas vezes, quando se fala destas mulheres, é do ponto de vista dos homens. Queria falar igualmente sobre classes sociais. E finalmente queria falar da responsabilidade do país que causou a guerra, porque estas mulheres são vítimas da guerra. E depois da guerra esses crimes não foram esclarecidos, como aconteceu na caso da Alemanha. E também queria falar sobre o porquê de estas mulheres terem continuado a ser vítimas mesmo depois da guerra. Porque a sociedade falocrática persistiu. E não só estas mulheres foram vítimas, como também as famílias foram vítimas..O que está a dizer é que mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com a derrota do Japão na Ásia frente aos americanos e outros Aliados, o sofrimento continuou para estas mulheres?Claro, claro..Porque foram repudiadas pela sociedade?Sim. Estas mulheres eram consideradas como sujas. Naquela época a virgindade da mulher era muito importante. Além disso, tinham servido os soldados japoneses, que eram os nossos inimigos, e eram consideradas traidoras. Como muitas mulheres francesas também foram, depois da guerra acabar na Europa. Raparam o cabelo às que conviviam com os alemães. Na Coreia, nem a família se atreveu a defendê-las. Eram a vergonha da família..Quando acabou a guerra, foi impossível terem uma vida normal? Tentar refazer a vida depois de anos de prostituição forçada?Não, de maneira alguma. Na verdade, muitas dessas mulheres foram mortas, porque o exército japonês queria apagar completamente a sua existência. Outras, depois, quando a guerra acabou, não puderam regressar. Não tinham dinheiro. Muitas nem sequer sabiam ler. E sentiam-se sujas, física e mentalmente. Assim, não puderam voltar. Ficaram onde estavam, como Lee Ok-sun, que ficou muitos anos na China. E às que voltaram, a sociedade fez delas vítimas pela segunda vez..Esta luta para que o Japão reconheça hoje crimes de guerra é sobretudo uma forma de justiça histórica? Não se trata de pedir indemnizações. É um reconhecimento moral?Especialmente isso. Dinheiro para quê? Têm mais de 80 anos. Algumas mais de 90 anos. Muitas delas já morreram. O que fariam com esse dinheiro? Vão ter 100 anos, vamos imaginar, quando receberem alguma coisa. O que vão fazer com o dinheiro? Acima de tudo, trata-se de recuperar a dignidade. Isso é importante, não é? E depois, o reconhecimento por parte do governo japonês de que foi um crime de guerra. O reconhecimento desse crime é muito importante para a humanidade. Não só para elas, antigas “mulheres de conforto”, mas para todas as mulheres vítimas da guerra. É que atualmente, onde há guerra, são as mulheres as principais vítimas, por causa da violência dos soldados..Outra novela gráfica sua que li foi A Espera. É um livro mais pessoal, que fala de outro drama na Coreia, que é a divisão entre o Norte e o Sul. Como é que essa divisão, consolidada depois da guerra de 1950-1953, afetou a sua família?A Espera é uma ficção baseada numa história verídica. A família da minha mãe vivia na Coreia do Norte. E a irmã mais velha, quando houve a guerra, não pôde fugir com o resto da família para a Coreia do Sul. Então a minha mãe sempre sofreu muito por não ter notícias dessa irmã mais velha..A irmã ainda está viva?Ela não sabe nada. Nunca teve notícias. Portanto, isso traumatiza-a. E ainda está a tentar encontrá-la. Talvez já esteja morta, não sei. Mas enquanto a minha mãe não souber se a irmã está viva ou morta, terá essa esperança. Embora a minha mãe seja muito idosa, tem ainda esperança de encontrar a irmã mais velha. Desde a minha infância que ouvi estas histórias de divisão de famílias. Não dava grande atenção na altura porque era muito jovem. Mas quando cresci, percebi como a minha mãe viveu isso, como tentava encontrar a sua família, a sua irmã. Tudo isto fez-me questionar a minha própria identidade. E depois, na Coreia de hoje, tudo isto continua muito vivo, porque ao fim de tantas décadas a tensão é grande entre as Coreias..Nos últimos meses aumentou essa tensão entre Norte e Sul.Sim. Vivo muito perto da Coreia do Norte, na fronteira. Sentimos realmente a tensão. Ouvimos o barulho feito pela Coreia do Norte. Ouvimos também tiros porque perto da minha casa há um quartel, e militares a receber formação. Diariamente. Ficamos stressados, temos medo. Muito, muito assustados. Portanto, há realmente coisas a acontecer neste momento que são muito negativas entre as duas Coreias. E isso preocupa-me..Quando pensamos na Coreia, pensamos sempre nesta situação do Norte e do Sul em disputa, no perigo de nova guerra, até mesmo de guerra nuclear, pois o Norte comunista desenvolveu essas armas. Mas há outra forma de ver o país, que é a história de sucesso económico da Coreia do Sul.Sim. Testemunhei essa evolução da Coreia porque há 50 anos era um país ainda pobre, a recuperar da destruição da guerra..Essa evolução foi algo surpreendente para si? É também resultado da ética de trabalho dos coreanos, da cultura coreana?A guerra devastou a Coreia do Sul. Na Coreia do Norte aconteceu o mesmo. Mas em 50 anos tanto mudou. É verdade que foi como um milagre. O país ressuscitou economicamente. Ou seja, os coreanos trabalharam muito. A sociedade coreana é muito dinâmica. Todos os dias há mudanças. Cresci a ver isso. Mas pergunto-me se esta economia que conseguiu progredir num espaço de tempo muito, muito curto, é boa? Porque o civismo e a educação cívica, e todas as outras coisas que deviam também progredir, talvez não tenham progredido tão rapidamente, e por isso há um atraso. Isso cria uma lacuna, penso eu. Portanto, isso é problemático, de certa forma. Mas penso realmente que os coreanos são muito dinâmicos. Também nas artes. Antes falávamos de K-pop ou K-dramas ou cinema. Agora estamos a falar sobre o sucesso da literatura coreana, com o recente Nobel. Até a novela gráfica ganha importância. Portanto, há mudanças também na cultura. Isso é muito bom..Quando viaja para diferentes países, sente que existe curiosidade pela cultura coreana, além de curiosidade pelo seu trabalho?Claro. Vivi em França durante mais de dez anos, porque estudei em França. Quando fui para França, ninguém sabia da Coreia. Os franceses só sabiam dos Jogos Olímpicos, que se realizaram em 1988. Talvez também soubessem da guerra, mas não muito bem. Então, as pessoas às vezes perguntavam-me: “É norte-coreana ou sul-coreana?” [risos] Eles não sabiam nada, pois não? E isso durou muito tempo. Mas agora, quando vou a festivais em países da Europa ou de outros lugares, as pessoas recebem-me com muito entusiasmo, com muita curiosidade, com muita simpatia, por eu ser coreana. É incrível, mudou completamente. Pessoas de todo o mundo estão interessadas na Coreia, na cultura coreana. Querem visitar a Coreia. Dançam como os coreanos [risos]. Aprendem mesmo a língua coreana. Isto é incrível, é um outro milagre..Fala do sucesso económico acontecer mais rápido do que outras transformações. Existe conflito entre modernidade e cultura na Coreia. É possível uma sociedade moderna manter a tradição?Claro que existe essa dificuldade. Faço parte de uma família tradicional, porque, ao contrário dos meus amigos que têm pais mais novos, os meus pais são da idade dos avós dos meus amigos. É um pouco diferente. A minha família é muito tradicional. Atualmente, entre a tradição e as gerações mais jovens, existem muitas lacunas. As gerações mais novas já não têm filhos. É um grande problema..Fala sobre a crise demográfica, acentuada na Coreia do Sul.Sim, a população está a envelhecer muito, muito rapidamente. Mesmo em Seul, na maioria das vezes, veem-se muitos idosos. Vivo numa zona rural, a norte de Seul. Na maioria das vezes, nas ruas, só há idosos. Muito poucos jovens por ali. A minha geração tem de cuidar das crianças e também de cuidar dos pais que são muito idosos. Mas a geração mais nova não quer casar, não quer ter filhos, porque é muito caro ter casa. E é difícil encontrar trabalho. E a educação é muito cara. Então, não querem ter filhos. Existem muitas lacunas entre a geração mais velha e as novas gerações..A democratização da Coreia do Sul foi conseguida pelo povo. Não foi imposta de fora. Sente que a democracia está muito presente na consciência dos coreanos?Sim, claro, porque provavelmente sabe que há uns anos, com a não-violência, fizemos uma revolução. Deitámos abaixo a ditadura e recuperámos a democracia. Portanto, na história da Coreia contemporânea, tivemos esse sucesso, mas também houve antes muitos movimentos falhados, massacres até. Sabemos que quando há algo que não está bem, podemos revoltar-nos. Está na sociedade, na mentalidade do povo. Existe isso. E isso é muito, muito importante. Mesmo agora, quando há tensão em torno da Coreia, em última análise, o que interessa são as pessoas, o que pensam, e devemos mostrar que somos contra a guerra, contra a bomba atómica, tudo isso..Uma última questão. Imagina possível, durante a sua vida, uma reunificação? Embora as duas Coreias sejam muito diferentes agora, política e economicamente, continuam a ser um só povo.Somos o mesmo povo. Tenho amigos estrangeiros que estiveram várias vezes na Coreia do Norte e disseram-me que, mesmo depois de 70 anos de separação, continuamos iguais. Foi o que me disseram. É incrível. Portanto, mesmo passado um século, acho que podemos continuar a ser iguais. Porque tivemos a mesma cultura durante muito tempo, éramos uma família. Mas atualmente a reunificação é realmente muito difícil, porque Kim Jong-un disse que agora são duas Coreias completamente separadas. Disse mesmo que é o país dos inimigos da Coreia do Sul. E depois, o atual governo da Coreia do Sul também é complicado. Portanto, a reunificação, neste momento é muito difícil. Mas, primeiro, espero que tentemos discutir entre as duas Coreias e comunicar através da arte, do desporto e da economia. Isso é muito importante. Primeiro, tentamos comunicar, isso é muito importante. Portanto, se pudermos comunicar, isso já não é mau..Lembro-me dos recentes Jogos Olímpicos, da foto dos jogadores da Coreia do Sul e da Coreia do Norte, de uma selfie, no pódio do ténis de mesa. Foi algo...Tocante. Emocionante. Eles nunca se conheceram, mas no estrangeiro estão juntos. Sim, o que interessa é a emoção, pois o coração fala mais do que a cabeça, não é?