Abram alas para a estrela italiana do momento.
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Quem tem medo de Paola Cortellesi?

Líder de bilheteiras no país de origem e prémio do público na Festa do Cinema Italiano, 'Ainda Temos o Amanhã', de Paola Cortellesi, lança agora o seu charme nas salas portuguesas. Um conto pop sobre a vida de uma mulher na Itália do pós-guerra.
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Às vezes o cinema é mesmo isto: uma celebração social, que tanto pode ter origem num título com evidentes atributos populares (olá onda cor-de-rosa da Barbie), como num filme-surpresa que usa a tragicomédia para tocar no nervo de uma problemática cultural. Este último corresponde ao mérito de Ainda Temos o Amanhã, justamente o filme que destronou o blockbuster de Greta Gerwig em Itália, o ano passado, tornando-se uma das produções do país mais vistas de sempre. A que é que se deve o fenómeno? Desde logo, ao dito poder, neste caso, da commedia all’italiana, de derrubar os lugares-comuns dramáticos da mulher na pobreza do pós-guerra - com especial enfoque na violência doméstica -, injetando um louvor feminista pop num cenário que dança com as marcas do neorrealismo. E não tenhamos dúvidas de que sabe dançar.

Primeira longa-metragem assinada por Paola Cortellesi, também ela a protagonista, C’è Ancora Domani destaca-se pela frescura, confiança e genica com que agarra o seu assunto. Não é um filme subtil, nada disso, antes um olhar que não se acanha na hora de explorar a caricatura masculina, na medida em que esta ofereça a imagem explícita de uma sociedade italiana ferida pela cultura do machismo - a realizadora e atriz inspirou-se em histórias das suas avós para conceber essa visão de Roma no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, quando os soldados americanos ainda estavam presentes nas ruas e os maridos em casa abusavam das suas esposas, ensinados que foram a “manter a ordem” doméstica com mão pesada.



Cortellesi interpreta Delia, uma das mulheres vítimas desse tempo (em diálogo com os dias de hoje), que consegue gerir uma fresta de liberdade nas suas saídas para fazer dinheiro numa série de biscates pela cidade, antes de chegar a casa e assumir a postura de escrava do marido e do sogro, com três filhos como testemunhas. Entre eles, a rapariga mais velha, apaixonada por um jovem endinheirado, tenta escapar a um destino semelhante ao da mãe, ignorando que, em segredo, a própria progenitora também está atenta aos sinais do amanhã, e a zelar pela não repetição da sua história...

Vinda do registo da comédia, Paola Cortellesi é hábil na adoção de um tom que dá a volta à gravidade da miséria encenada, tornando qualquer momento de impulso de violência num interlúdio mágico, em forma de bailado cómico. O que não deixa de ser uma atitude de risco, mais ou menos bem-sucedida, mediante as opções de banda sonora, tendo sempre em Valerio Mastandrea, no papel do marido, um ator comprometido com o ridículo - um intérprete que já tinha feito um bom par com Cortellesi na comédia Manual de Sobrevivência para Pais (2020), de Giuseppe Bonito, filme também recheado de criativas fugas da realidade.

De novo, quando nos perguntamos sobre o que há de tão vencedor na primeira obra que é Ainda Temos o Amanhã, a resposta pode ser o final superlativo, quase a dizer que, em retrospetiva, estivemos perante um objeto de suspense. Porém, mais do que isso, a sofisticação deste conto feminista a preto e branco assenta numa vivacidade genuína que vem das escolhas formais, imperfeitas mas cativantes.

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