“Vão usar a minha voz para as canções?”. A pergunta feita por Audrey Hepburn ao realizador George Cukor e ao letrista Alan Jay Lerner misturava-se com os bebericados e trincas de um pequeno-almoço de chá, pãezinhos e geleia de alperce. “Certas notas talvez tenham de ser interpoladas com outra voz”, responderam-lhe; mas, sim, estavam a contar com a sua voz para muitas das canções. Ou assim lhe deram a entender, inclusive contratando um professor de canto para trabalhar com ela os temas musicais (juntamente com outro de dicção, para o inglês cockney e mayfair) e planeando gravar tudo ainda antes da rodagem – em cena, Hepburn só teria de fazer playback. Pois bem: a desilusão veio já numa fase avançada, quando a soprano Marni Nixon assumiu sub-repticiamente a tarefa de lhe dobrar a voz no canto e, para além disso, guardar segredo sobre o assunto..Esta é a história de um dissabor muito típico da máquina clássica hollywoodiana. Hepburn esforçara-se com o habitual nível de excelência para assumir a integralidade do seu papel de Eliza Doolittle em My Fair Lady – Minha Linda Senhora (tinha até uma breve experiência de cantar no grande ecrã, primeiro no musical Cinderela em Paris, ao lado de Fred Astaire, e depois em Boneca de Luxo, com o memorável tema Moon River), mas o produtor Jack Warner decidiu pelo “profissionalismo” vocal, pedindo para que fosse ocultado da atriz, até à última da hora, a substituição da sua voz nas canções... Afinal, aquela conversa de que o canto de Audrey seria intercalado aqui e ali por uma frase musical de outra cantora não passou disso mesmo, conversa fiada. Foi tudo ao contrário..“Porquê pagar a uma atriz um milhão de dólares para um musical se a voz dela – absolutamente central na interpretação – não se iria ouvir?”, interroga-se enfaticamente Donald Spoto na biografia de Audrey Hepburn (edição Oceanos). A questão é, claro, bastante válida. Mas talvez a única explicação seja a pura falta de explicação! Por outras palavras: a mitologia da indústria do cinema americano é feita de muitas incongruências desta natureza..Na cerimónia dos Óscares a contradição revelou-se amarga: se é verdade que Warner quisera dar o papel a Audrey pelo seu estatuto de estrela, rejeitando a hipótese da então desconhecida Julie Andrews, que interpretara Eliza Doolittle na Broadway, o facto é que lhe saiu o tiro pela culatra quando essa mesma debutante “roubou” a estatueta a Hepburn com a sua performance musical como ama mágica em Mary Poppins... Uma ironia muitas vezes lembrada, mas quase sempre omitindo o nome (Marni Nixon) que sofreu igualmente com os caprichos da produção – no fim de contas, adoramos My Fair Lady tal como veio ao mudo, mas estes impasses do seu ADN são um testemunho importante de como as coisas funcionavam..A cantora fantasma.A soprano Marni Nixon..Assim, falar do desgosto a que a doce Audrey foi sujeita (apesar do cuidado e gentileza permanentes do cineasta George Cukor), num filme onde a sua transformação é um prodígio para os olhos, será também falar do esquecimento a que Marni Nixon (1930-2016) foi submetida, e não pela primeira vez. Com efeito, a cantora americana que antes dobrara a voz de Deborah Kerr, em O Rei e Eu (1956), Natalie Wood, em West Side Story – Amor Sem Barreiras (1961), e até Marilyn Monroe, nas notas mais difíceis do tema principal de Os Homens Preferem as Loiras (1953), foi reconhecida demasiado tarde pelas canções que ajudou a eternizar, sempre por um baixo cachet..Neste sistema de trabalho onde Nixon se limitava a regravar as vozes das atrizes com o máximo respeito pela atmosfera das cenas, e sem direito a crédito na ficha técnica dos filmes, a própria teve de conviver com os maus sentimentos de quem recebia tarde a notícia dos produtores de que ia ser dobrada – o caso de Natalie Wood. Mas com Hepburn foi diferente: ultrapassada a tristeza do enorme esforço inglório, a atriz, na sua encantadora personalidade, encetou com Nixon um trabalho de profunda colaboração.