Spielberg a assumir tarefas de assistente na rodagem de The Sugarland Express
Spielberg a assumir tarefas de assistente na rodagem de The Sugarland Express

Quando Spielberg era um “caloiro” de Hollywood

The Sugarland Express, entre nós lançado como Asfalto Quente, foi a primeira produção cinematográfica assinada por Steven Spielberg, uma história de emoções fortes que envolveu também algumas arrojadas experimentações técnicas. A sua primeira apresentação pública faz hoje 50 anos.
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Se há datas a partir das quais é possível organizar a história do cinema como uma antologia de momentos emblemáticos, ciclos temáticos ou ruturas estéticas, então o dia da estreia de The Sugarland Express, primeira longa-metragem para cinema de Steven Spielberg, será seguramente uma delas. A sua primeira exibição pública, em Nova Iorque, no Museu de Arte Moderna (MoMA), ocorreu no dia 30 de março de 1974 - faz hoje 50 anos.

A data tem um valor simbólico, claro, mas é apenas um detalhe para compreender a conjuntura em que tudo aconteceu. Desde logo porque o lançamento global no mercado americano (“wide”, como dizem os técnicos do marketing) ocorreria alguns dias mais tarde, a 5 de abril. Mas sobretudo, neste caso, porque não se pode confundir a estreia de The Sugarland Express com o início da carreira de Spielberg. É bem certo que a sessão no MoMA surgiu integrada num ciclo dedicado a “novos realizadores”, mas na altura, com 27 de anos (rodara o filme ainda com 25), ele era já um valor conhecido e reconhecido na indústria de Hollywood.

Importa entender Hollywood na sua dimensão mais realista e pragmática, tantas vezes recalcada pela mitologia do lugar. A saber: um conglomerado de produção em que, pelo menos desde os anos 50, cinema e televisão existiam numa permanente relação económica, conceptual e artística - recorde-se, a propósito, que o primeiro episódio da célebre série Alfred Hitchcock Apresenta foi difundido pela CBS em 1955.

Neste contexto, Spielberg tinha-se distinguido através da realização de episódios de séries muito populares (incluindo um de Columbo, com Peter Falk, em 1971) e, sobretudo, de alguns telefilmes capazes de superar as fronteiras do seu próprio modelo de produção. Assim aconteceu com Duel (1971), um thriller de invulgar suspense e vibração emocional, opondo o condutor de um automóvel (interpretado pelo então muito popular Dennis Weaver) e um enorme camião que tenta abalroá-lo… O impacto de Duel na televisão dos EUA justificou mesmo a sua distribuição nas salas de muitos países - em Portugal, estreou-se em 1973, com o título Um Assassino pelas Costas.

Goldie Hawn & etc.

William Atherton, Goldie Hawn e Michael Sacks em The Sugarland Express: realismo & espectáculo.

The Sugarland Express, entre nós lançado como Asfalto Quente, envolveu vários desafios, a começar pelo facto de o seu elenco ser liderado por Goldie Hawn, na altura uma das atrizes mais populares de Hollywood. Em poucos anos, através de três comédias românticas - A Flor do Cacto (1969), Caiu uma Garota na Minha Sopa (1970) e Só as Borboletas São Livres (1972) -, ela impusera-se como herdeira de alguns modelos clássicos de Hollywood, dir-se-ia a meio caminho entre Katharine Hepburn e Judy Holliday, combinando as ambivalências psicológicas com o artifício cómico. Graças a A Flor do Cacto, contracenando com Walter Matthau e Ingrid Bergman, sob a direção de Gene Saks, ganhara mesmo um Óscar de atriz secundária.

A sua nova personagem envolvia uma clara transfiguração de uma “imagem de marca” tecida de sedução e ligeireza. Isto porque, mesmo com momentos pontuados por insólitos elementos de humor, The Sugarland Express afirma-se, no essencial, como um drama de inusitadas emoções. Goldie Hawn interpreta Lou Jean Poplin, uma jovem que esteve presa; conhecemo-la a visitar o marido, Clovis Michael, a cumprir uma pena de prisão no Texas - apesar de Clovis estar apenas a quatro meses de terminar a sua pena, ela quer que ele fuja para irem recuperar o seu bebé que a assistência social colocou numa família adotiva…

Interpretado pelo excelente William Atherton (um daqueles secundários “à moda antiga” que nunca encontrou um filme capaz de o promover à condição de ator principal), Clovis foge mesmo da prisão, aproveitando alguma confusão no pátio em que os reclusos se cruzam com os muitos familiares visitantes. Quase rocambolesca, essa cena de abertura será, afinal, o princípio de uma cada vez mais violenta escalada dramática: Lou Jean e Clovis acabam por “assaltar” um polícia (Michael Sacks), utilizando-o como refém enquanto tentam chegar à casa onde está o seu filho.

Com frequência, Spielberg surge rotulado como “mestre dos efeitos especiais”, sobretudo por causa das cenas de ação das aventuras de Indiana Jones, dos dinossauros do Parque Jurássico ou dos cenários de ficção científica de títulos como A.I. - Inteligência Artificial (2001) e Relatório Minoritário (2002). Seja como for, importa lembrar que, para ele, as proezas técnicas nunca surgem como um fim em si mesmo, já que são elaboradas em função das necessidades iconográficas e narrativas de cada filme.
Assim aconteceu em The Sugarland Express com a utilização das novas câmaras Panaflex, da Panavision, postas à disposição do diretor de fotografia Vilmos Zsigmond, ele que viria a ganhar um Óscar graças ao seu trabalho em Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977), outra vez com Spielberg. Em termos simples, tais câmaras possuíam todas as qualidades clássicas de um equipamento vocacionado para o formato de ecrã largo (“scope”), mas com uma nova e espetacular agilidade, resultante da sua reduzida dimensão e também do peso muito mais ligeiro.

Tais qualidades seriam fundamentais, sobretudo para as muitas cenas no interior do automóvel em que seguem Lou Jean, Clovis e o polícia raptado, garantindo duas possibilidades que Zsigmond soube explorar de forma admirável: por um lado, um sofisticado equilíbrio luminoso entre esse interior e a ação no exterior; por outro lado, uma agilidade de movimentos extremamente complicados no espaço reduzido do automóvel (com frequência a alta velocidade). O investimento dramático nas cenas de perseguição foi de tal modo exigente que, na parte final, os fugitivos são seguidos por polícias e mirones distribuídos por mais de duas centenas de carros - veículos a sério, convém acrescentar, sem recurso a figurações digitais! 

Poster do filme.

Um prémio em Cannes

Ver ou rever agora um filme como The Sugarland Express/Asfalto Quente poderá ser uma bela surpresa, já que o seu misto de realismo básico e exuberância espetacular se distingue por uma energia sempre contagiante - é possível encontrá-lo na Apple TV+ ou no iTunes.

Curiosamente, entre as distinções que ganhou, The Sugarland Express teve a consagração mais importante na Europa, no Festival de Cannes, onde recebeu o prémio de argumento, partilhado por Hal Barwood, Matthew Robbins e o próprio Spielberg. Os três argumentistas inspiraram-se em factos verídicos, também acontecidos no Texas, cerca de cinco anos antes, ainda que explorando as tradicionais “liberdades” dramáticas - na vida real, Clovis não fugiu da prisão, tendo sido libertado duas semanas antes da tentativa do casal para recuperar o filho…

Para lá das condições particulares em que este projeto nasceu, não será abusivo reconhecer-lhe elementos que viriam a pontuar muitos momentos vitais do labor de Spielberg, a começar pelo misto de utopia e vulnerabilidade do próprio território familiar. Nesta perspetiva, as sequências finais de The Sugarland Express são das mais intensas e perturbantes de toda a sua filmografia. E tanto mais quanto Spielberg se revelava já um sofisticado encenador (e diretor de atores!) que surpreendeu o próprio produtor Richard D. Zanuck; durante a rodagem, em declarações à revista American Cinematographer (maio 1973), fez um retrato sucinto do “caloiro” Spielberg: “É alguém que faz o trabalho de casa e se apresenta bem preparado - ainda assim, quando deteta algo de espontâneo nas filmagens, sabe adaptar-se e ser muito criativo. Parece-me que, depois deste filme, vai ser um grande realizador.”

É caso para dizer que o resto é história… Em 1975, com Tubarão, de novo com produção de Zanuck (em ambos os casos associado a David Brown), Spielberg iria revolucionar, não apenas muitas formas correntes de espetáculo, mas também, para o melhor e para o pior, os próprios conceitos de produção e difusão da máquina de Hollywood. Sem esquecer que The Sugarland Express foi também o seu primeiro filme com banda sonora de John Williams, contando com a participação da harmónica de Toots Thielemans - de então para cá, Williams compôs a música de mais 28 filmes de Spielberg, incluindo Os Fabelmans (2022), a sua mais recente longa-metragem.

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