Num tempo em que dois grandes conflitos abalam o mundo, o historiador Sérgio Luís de Carvalho publica o livro Portugal entre Churchill e Hitler, que sendo sobre a Segunda Guerra Mundial retrata em muito o que se passa na atualidade. O foco do autor é o de como a propaganda aliada e nazi influenciou a opinião pública de então, situação a que não se escapa hoje e que pode iluminar até que ponto a situação é semelhante. Por isso, questiona-se Sérgio Luís de Carvalho sobre a razão de ter escolhido para primeira epígrafe a antiga frase de Ésquilo, “A verdade é a primeira vítima da guerra”, e se continua difícil separar as falsidades das verdades nos conflitos. A resposta parece ser fácil: “Estamos hoje, como sempre, no campo da «verdade única» e da manipulação. Um exemplo flagrante foi o lastimável comportamento dos meios de comunicação aquando da invasão do Iraque, em 2003. Todavia, nada se aprendeu, hoje é igual.”.Daí que se pergunte ao historiador sobre quando no futuro se fizer a história dos atuais dois conflitos em curso – na Ucrânia e no Médio Oriente -, se os historiadores estarão perante os mesmos truques da propaganda das partes envolvidas ou o jornalismo atual já está a fazer um crivo? Também não lhe é difícil responder: “O atual jornalismo está, como sempre, subordinado à tal 'verdade única'. Nem sequer se pode falar de crivo noticioso; pelo contrário, é fácil constatar que a maioria dos media está "em guerra", ora alinhando pelo discurso oficial, ora omitindo notícias supostamente discordantes, ora adulterando as próprias notícias. Parece excessivo? Não é por acaso que na introdução do livro falo de um caso flagrante ocorrido há meses nos noticiários de uma grande estação televisiva nacional. Foi só um exemplo. É fácil detetar outros, sobretudo se cotejarmos as notícias dos países colaborantes nos conflitos, com noticiários de estações estrangeiras verdadeiramente neutras. E já não há muitas…”.É o tema da manipulação da informação em tempo de conflitos que percorre esta nova investigação de Sérgio Luís de Carvalho, fazendo de Portugal entre Churchill e Hitler um interessante “manual” sobre o uso da propaganda na guerra e dos seus "truques". Que, como já referiu, continua atual: “A propaganda de guerra usa sempre os mesmos truques, conta sempre com a cumplicidade da maioria da comunicação social, com a subserviência dos 'especialistas' e dos 'comentadores', e com o medo de muitos. Medo esse que, aliás, os mesmos fautores de guerra sistematicamente alimentam. Cria-se uma 'verdade única' cujo fim é justificar uma guerra - diretamente ou por procuração. Logo na introdução deste livro refiro os chamados 'Dez princípios da propaganda de guerra', elaborados por um deputado inglês em 1914. Lendo esse decálogo, percebemos o que se passou ontem e o que passa hoje.”.Até que ponto o jornalismo de então - português, inglês e alemão - foi muito manipulado? A resposta é esta: “Foi, como sempre. O jornalismo do Eixo e dos Aliados era alvo da inevitável censura de guerra nos seus países, a que se somava, no caso do Eixo, o cariz totalitário dos regimes integrantes. Já o jornalismo português foi vítima da censura do regime e de manipulação informativa consoante as diretrizes governamentais. Por exemplo: a comunicação social lusa estava inibida de falar dos 'soviéticos' ou do 'Exército vermelho'; eram sempre 'os russos'. Também se devia minimizar ou omitir os triunfos soviéticos. Até as revistas que estavam alinhadas com os aliados - como a militante O Mundo Gráfico – tiveram de se submeter a essa norma. Sempre que havia um triunfo soviético, as imagens do Exército Vermelho nessa revista referiam-se a 'triunfos dos Aliados'”..Este é um livro profusamente ilustrado, a melhor forma de provar a veracidade de uma investigação em vez de criar uma narrativa como a que se verifica atualmente, um tempo em que as redes sociais estão repletas de notícias falsas e as pessoas são levadas ao engano. Quando se faz esta comparação, Sérgio Luís de Carvalho afirma: “O que é terrível nestes tempos, é que a informação que temos nos media usuais, têm escassas alternativas. Salvo exceções - como alguns meios de comunicação independentes online -, não há verdadeiras alternativas. E sabemos o que valem as notícias das redes sociais.” Dá um exemplo dos enganos: “Há dias, alguns alunos meus disseram-me estar assustados pois leram que 'os russos iam invadir Portugal'. Perguntei-lhes onde tinham lido isso e responderam-me com o nome de uma rede social muito famosa e muito na moda… Quanto à quantidade de ilustrações, isso tem a ver com o tema. Como falar de propaganda sem as imagens dos materiais propagandísticos?" .Não se pode deixar de questionar o historiador sobre um dos principais mitos portugueses sobre os anos entre 1939 e 1945, aquele de a História aceitar que Portugal se manteve neutro durante o conflito. Concorda o historiador que Salazar conseguiu esse estatuto para o país ou mais não é do que uma fábula? Carvalho considera que “Salazar soube manobrar e navegar bem entre as águas turvas do conflito, seja jogando sempre numa relação dúbia com ambas as partes, seja mantendo Franco fora da guerra. Foi hábil, sagaz e inteligente. O seu objetivo foi sempre o da salvaguarda do regime, algo que ficaria em causa se se 'encostasse' a um dos lados. Por outro lado, sabia da incapacidade do nosso exército de fazer o que quer que fosse. Devido a essa cautela e a esse objetivo, Salazar sempre desejou um fim da guerra através de negociações, em vez da derrota de uma parte. Ao mesmo tempo, teve a sorte do seu lado. O fracasso de Mussolini na Grécia e o subsequente adiamento da invasão da URSS, desviaram as atenções de Hitler de uma intervenção - com o apoio de Franco - na Península Ibérica, o que arrastaria Portugal para o conflito”..No que respeita à investigação para este livro, Sérgio Luís de Carvalho não encontrou dificuldades e proibições nos arquivos nacionais, ou seja, o assunto já não incomoda as instituições oficiais. Dá exemplos: “No livro trato de quatro formas de propaganda usadas pelos dois lados na Segunda Guerra: rádio, cinema, jornais e folhetos/brochuras, e todo este material está por aí, à mão de semear. Os filmes de propaganda estão disponíveis em várias plataformas, os grandes jornais militantes estão disponíveis em hemerotecas ou estão digitalizados, os folhetos e as brochuras de propaganda nazi ou aliada adquirem-se em feiras de antiguidades, alfarrabistas, em sites de compras… As fontes estão por aí, acessíveis aos olhos e ouvidos de todos. Basta olhar, ler, contextualizar e analisar.”.O historiador Sérgio Luís de Carvalho..O livro dedica um bom espaço às “revistas militantes”. Refletiam uma verdadeira germanofilia lusa ou apenas a indecisão de Salazar sobre quem apoiar, pergunta-se: “Salazar nunca teve dúvidas sobre quem apoiar. Ele navegava nas águas turvas do conflito, buscando o que achava melhor para o seu regime, que ele identificava, aliás, como sendo o melhor para Portugal. Os apoios que distribuía pelos dois lados eram sempre muito calculados e calculistas. Até 1943, preocupava-se em jogar nos dois tabuleiros; a partir de 1943, com a perspetiva de derrota de Berlim cada vez mais à vista, começou, lentamente, a inclinar a balança para os aliados. A sobrevivência política era-lhe essencial. Conseguiu-o, graças à sua habilidade e às vicissitudes do conflito. Já agora, diga-se que a grande maioria da nossa população era aliadófila e não germanófila.” Quanto à Censura, o historiador garante que fez o seu “papel” de bom grado e não se sentiu vítima das instruções de Salazar: “O seu trabalho era seguir as instruções de Salazar. Não foi vítima, foi instrumental e quase sempre de bom grado. Afinal, Portugal era uma ditadura.”.Refere-se muitas vezes que a Guerra Civil de Espanha foi a antecâmara do segundo maior conflito bélico mundial. Concorda o historiador com essa perspetiva? “Sim. As democracias abandonaram as legítimas autoridades republicanas e fizeram vista grossa à intervenção nazi/fascista ao lado dos franquistas. O bombardeamento da aviação nazi a Guernica foi replicado, meses depois, em Roterdão, por exemplo. Nesse sentido, a miopia de Londres e de Paris - sobretudo da primeira - foi significativa, ao partir do princípio que tentando apaziguar Hitler e dando-lhe mão livre em Espanha - como na Áustria ou na Checoslováquia -, ele se «acalmaria» e não teria mais pretensões. Claro que a mensagem que passou foi outra, e Hitler percebeu-a: as «democracias» eram fracas e temerosas. Eram-no, em grande parte. Não quiseram parar Hitler em Madrid ou em Viena, logo, não o conseguiriam parar em Varsóvia, em Amesterdão, em Bruxelas, em Paris e estiveram quase a não o conseguir parar em Londres.”.Pergunta-se ao historiador se a derrota da Alemanha também foi em parte de Salazar: “Não. Salazar e o Estado Novo sobreviveram, como ele queria. Nem foi preciso grandes adaptações posteriores. O Ocidente permitiu-lhe a sobrevivência calmamente e as esperanças de democratização, cá e em Espanha, valeram zero, em prol de um interesse maior, a Guerra Fria. Uma vez mais, as democracias apoiaram ditaduras por interesse.”.Que facto surpreendeu mais o historiador durante a investigação é a pergunta final: “Surpreendeu-me ver como os germanófilos lusos foram tão convictamente nazis. Ingenuamente, quiçá, eu esperava uma certa moderação na sua linguagem racista, antissemita, xenófoba e pró-eugénica. Afinal, somos latinos e não arianos… Mas não. Aqueles homens e aquelas mulheres que, por cá, militaram pelo Reich, divulgaram na sua rádio, nas suas revistas e nos seus folhetos/brochuras todos os princípios do ideário nazi. Assumiram esses princípios, mesmo sabendo que o regime - e alguns setores da Igreja - não os partilhavam totalmente. Ao mesmo tempo, mesmo nas derradeiras semanas de guerra, com Berlim cercada e a guerra mais que perdida, garantiam nos seus artigos que a Alemanha podia ainda vencer. Até depois da guerra, com as notícias dos campos de concentração e da barbárie nazi, muitos permaneceram fiéis e mantiveram um discurso pró-nazi. Como cito no livro, houve um germanófilo português que chamava aos acusados nazis no Julgamento de Nuremberga os «mártires de Nuremberga» ou «as estrelas no firmamento dos povos». Um outro germanófilo luso, que durante a guerra emitira crónicas radiofónicas para Portugal a partir da Alemanha, garantiu que Hitler, no final da guerra, não usou as armas destrutivas que tinha ao seu dispor e que lhe dariam a vitória porque Hitler era «um romântico e um sentimental» que não queria provocar mortes inocentes…” .Portugal entre Churchill e HitlerSérgio Luís de CarvalhoClube do Autor263 páginas.Outras novidades literárias.A maldade por três gerações Na biografia do autor impressa numa das badanas de O homem que se fez esquecer fica registado que Steven Braekeveldt “é um colecionador e contador de histórias”. Nada mais verdadeiro face ao que se lê neste relato sobre a sua família, um bom exemplo dessa arte, e a frase que o inicia é de uma grande violência: “O meu avô era má pessoa”. Em mais de trezentas páginas recupera a vida dos seus antepassados e os acontecimentos que protagonizaram durante um século. Tudo começa com o bisavô, um personagem fascinante, e continua com o avô, um personagem que caracteriza como infame e que pretende revelar. Segundo o autor, depois de o avô ter participado em vários eventos fulcrais e trágicos do século XX regressa a casa apenas com um propósito, o de se tornar invisível aos olhos do mundo. A razão deve-se a ter pertencido às SS nazis, de ter privado com Hitler e Albert Speer, de ter estado na frente russa da invasão alemã, de ter sido preso em Estalinegrado, de ter sido declarado inimigo do Canadá pelas suas ações nesse país durante oito anos… Uma lista do mal que protagonizou e de que não se envergonhava, que o neto deixa escrita e que lhe concede o estatuto de uma história verídica..O Homem que se Fez Esquecer Steven BraekeveldtCasa das Letras348 páginas.Confronto de ideologias.A autora traz como rótulo o facto de ter sido a mais jovem vencedora do Prémio Booker, o que lhe dá a possibilidade de atrair os leitores que ainda a desconhecem. Neste romance, tudo tem início com uma derrocada de terras que isolam uma região do mundo. A protagonista é seduzida pelo isolamento desse oásis e durante anos cria um universo em que conta com a colaboração de várias pessoas. Em pano de fundo existe a intenção de se fundar nesse recanto um bunker que salvará do Apocalipse os que a ele tiverem direito. Uma narrativa, ou uma parábola, que reflete os nossos tempos..A Floresta de Birnam Eleanor CattonBertrand Editora414 páginas