Em 1995, o artista sul-coreano Nam June Paik (1932-2006) criou uma instalação - Electronic Superhighway: Continental U.S., Alaska, Hawaii - que, pela sua monumentalidade e subtileza crítica, permanece como um emblema da sua arte. Disponível no Smithsonian American Art Museum, em Washington, podemos descrevê-la como um mapa de neons dos EUA, “ocupado” pelas imagens de três centenas de televisores. O simbolismo é eloquente: vivemos num mundo saturado de ecrãs, a ponto de podermos confundir o sistema de ecrãs com a totalidade do mundo. Mesmo não sendo um trabalho artístico, o mais recente estudo da neurologista francesa Servane Mouton, especializada em psicopatologia da aprendizagem, não deixa de prolongar o sentido crítico daquela instalação. O título é eloquente: Écrans, Un Désastre Sanitaire (ed. Tracts-Gallimard, fevereiro 2025).Identificar a proliferação de ecrãs como “um desastre sanitário” não exclui o reconhecimento das mediocridades com que o sistema audiovisual nos agride - a boçalidade conceptual do Big Brother televisivo aí está, diariamente, a poluir o consumo das imagens e o próprio imaginário social. Seja como for, a análise de Servane Mouton acaba por ser (se tal é possível...) ainda mais contundente e assustadora. . A autora começa por resumir as várias etapas (francesas) do nosso mundo de infinitas comunicações: primeiro, com a vulgarização dos televisores caseiros durante a década de 1970; depois, vinte anos mais tarde, através do desenvolvimento da internet; enfim, a partir de 2007, com a “difusão exponencial” dos smartphones.A análise não exclui um prudente otimismo - o ensaio tem mesmo como subtítulo “Ainda é tempo de agir”. Seja como for, recorda que, em França, os primeiros profissionais a chamar a atenção para o aumento de “perturbações da comunicação e da alimentação nas crianças” foram especialistas da voz e da reeducação verbal (ortofonistas), além de pediatras e profissionais dos centros de proteção maternal e infantil. A literatura científica que se foi desenvolvendo permite reconhecer que “os ecrãs estão no centro de questões colossais de saúde individual e pública a curto, médio e longo prazo”. A estatística ajuda a esclarecer o âmbito dos problemas. Assim, atualmente, há 32 mil milhões de objetos em rede, de tal modo que 87% dos seres humanos com mais de 12 anos possuem um smartphone (entre os 12 e os 17, a percentagem é de 96%).Os tempos de consumo diário em frente dos ecrãs dão que pensar: de 1h47m para as crianças de três a seis anos, até 4h50m para as idades entre 15 e 17 anos (segundo um estudo de um instituto francês referente a 2015-2016). Como recorda a neurologista, as crianças e adolescentes “não são adultos em miniatura, mas seres em desenvolvimento”, pelo que semelhante “substituição” da vida vivida pela vida enquadrada por um ecrã configura um “risco sanitário” e, por fim, como diz o título, um “desastre”. . Enfim, a educaçãoServane Mouton vai inventariando os resultados de diversos estudos que procuram compreender, descrever e quantificar os efeitos dos ecrãs nas nossas vidas (privadas e públicas). Entre os temas suscitados por tais estudos surgem as alterações do sono, as perturbações do desenvolvimento neurológico e socioemocional, e ainda a “inquietante deterioração” da saúde mental das crianças entre os 11 e 15 anos, em especial as raparigas.Por um contraste quase irónico, tudo isso implica que a ideia de um certo nomadismo virtual (“viajar” pela internet como se fosse um imenso continente de maravilhas desconhecidas) esteja, afinal, a ser contrariada pelo reforço da sedentariedade de muitas pessoas. Sem esquecer que a imobilidade perante os ecrãs promove uma “falta de atividade física” que é também um fator de “risco cardiovascular”.Escusado será lembrar que estes são dados que arrastam questões económicas, políticas e especificamente estatais que não podem ser ignoradas. Enfrentá-las envolve muito mais do que o labor de um legislador “de gabinete” (a expressão é minha), exigindo não apenas novos enquadramentos legais e éticos, mas também um pensamento ágil para lidar com uma pergunta que as sociedades “em rede” vão recalcando. A saber: num universo superpovoado de ecrãs, o que é, o que pode ser e o que deve ser a educação?