‘Pântanos’: a aurora do 'thriller' gaélico
Aos poucos, algo de vital vai-se manifestando na ficção irlandesa. Primeiro foi a inédita nomeação ao Óscar de uma produção falada em irlandês, The Quiet Girl – A Menina Silenciosa (2022), de Colm Bairéad – que se baseia no já de si excelente conto de Claire Keegan, Acolher (editado entre nós pela Relógio D’Água) –, e mais recentemente destacou-se o vencedor de um BAFTA Kneecap – O Trio de Belfast, de Rich Peppiatt, docudrama carregado de humor negro que narra a formação desta banda de hip hop cujo estilo de protesto musical se alicerça no uso da língua irlandesa como forma de resistência identitária. Ora, tem sido precisamente essa a missão do canal TG4, que, não por acaso, produziu The Quiet Girl e financiou Kneecap, surgindo agora como coprodutor, ao lado da BBC, daquela que se tornou na primeira série de idioma irlandês, ou gaélico, a ser exibida no horário nobre da BBC Northern Ireland, com um género pioneiro nestas paragens: o thriller.
Com o título Pântanos (do original Crá, que significa “tormento”), os seis episódios que hoje aterram, em exclusivo, no catálogo streaming da Filmin trazem um sabor a começo. Por outras palavras: há qualquer coisa de inocente na aparência desta série, que revela a sua própria condição de desbravadora de novos caminhos na televisão irlandesa, com vontade, inclusive, de imprimir um subgénero... Em entrevista ao jornal The Guardian, o produtor Ciarán Charles designou-o de “Gaelic noir”, a contrastar com a moda do Scandi noir, sublinhando como elementos definidores “o modo de narração, um compositor celta e uma inquietante banda sonora”, que fez de Pântanos produto de exportação, com o orgulho de ter chegado a 68 países.
Bem, não será certamente o estímulo da banda sonora que converte a série escrita por Doireann Ní Chorragáin e Richie Conroy num thriller original; pode até dizer-se que não faltam clichés na construção dramática. Mas dessa estrutura frágil – e sobretudo depois do segundo episódio – vai emergindo uma “verdade”, um tipo de humor e uma base histórica que têm, de facto, que ver com a cultura irlandesa e um não refinado modo de expressão.
Ambientada na zona árida de Donegal (uma região selvagem à volta de Gweedore, no noroeste da Irlanda), Pântanos segue os dias amargos de um agente da polícia local após a descoberta, por parte de um colega, dos restos mortais da sua mãe, desaparecida há mais de uma década. Dado o vínculo familiar, Conall é afastado do caso, procurando, claro, manter-se ligado aos detalhes do processo através do dito colega, Barry (uma daquelas figuras simpáticas e atrapalhadas que dão coração aos episódios), e fazendo investigação a título pessoal, com a inesperada ajuda de uma jornalista ávida de seguidores para o seu podcast de true crime (uma variante gaélica de Only Murders in the Building).
A certa altura, fugindo aos trâmites mais óbvios da diligência dos polícias, há mesmo um documentário a ser rodado num bar local, com entrevistas aos populares, como estratégia para reavivar a memória das pessoas que conheciam a mulher desaparecida. E esse é um interessante método para alcançar uma espécie de catarse comunitária.
“Uma região única no mundo”
Na adequada desolação invernosa desta paisagem vão então sobressaindo as feridas secretas de uma pequena comunidade que, no fundo, concentra muitas marcas violentas do presente e do passado, desde a nova masculinidade tóxica ao terrorismo do IRA. Uma sinalização de temas que acaba por se diluir no panorama geral da vivência irlandesa, necessariamente enraizada num uso quotidiano da língua nativa.
Ainda nas palavras do produtor Ciarán Charles, que considera o Donegal “uma região única no mundo”, estamos perante um cenário que funciona como personagem: “Há algo de cru, inspirador e também assustador neste lugar, no seu clima e aspereza”. Eis, pois, o ganho de uma série apostada em colocar a Irlanda rural no mapa da ficção internacional, apesar da falta de financiamento do governo irlandês.
Segundo o diretor da TG4, Alan Esslemont, em declarações ao mesmo The Guardian, salta à vista uma “apatia profundamente arreigada do estado irlandês em relação aos seus media de língua minoritária, a língua irlandesa, constitucionalmente a primeira língua do país, reconhecida pela União Europeia”