Memórias de um verão em Veneza. Um livro misterioso. Um prémio e uma casa com telhados de vidro (literalmente), onde um casal da classe média parece ser apenas parte de um design perfeito... Não será esta a exata ordem de apresentação, mas o certo é que Pura Coincidência mistura os seus elementos com uma confiança invulgar no tempo narrativo: ao longo de sete episódios, ou capítulos, a série criada e realizada pelo mexicano Alfonso Cuarón (em estreia na Apple TV+) vai recuando ao verão em Veneza, proporcionando sucessivos choques psicológicos mediante a leitura do livro misterioso, e dando vislumbres da vida de aquário naquela casa londrina com telhados de vidro, onde um dia se chega com um prémio e noutro se sai com uma mala de viagem malfeita, sem oportunidade para dar uma explicação. .Todos os caminhos levam a Catherine Ravenscroft, a personagem de Cate Blanchett que, no estilo da queda, contém as devidas semelhanças com a regente de orquestra Tár (do filme de Todd Field). É ela a jovem mãe nas imagens das férias venezianas; é ela a documentarista premiada por um consistente trabalho “em busca da verdade”; e será ela a primeira a tentar queimar o livro que lhe chegou às mãos de forma suspeita. O que é que se passa? Catherine percebe que um determinado evento do passado lhe está a bater à porta em versão livro: ela é a mulher retratada por esse romance que informa “não ser coincidência” qualquer analogia com pessoas vivas ou mortas. .Vamos por partes, então. Pura Coincidência, ou Disclaimer, no título original, divide-se entre o mundo gourmet de Catherine e a mágoa bolorenta de um homem velho chamado Stephen Brigstocke (Kevin Kline, com uma malícia rejubilante). Foi ele, um professor acabado de se aposentar, quem descobriu e deu à estampa o manuscrito do maldito romance, da autoria da falecida mulher, que o terá redigido sob o calor da raiva: uma mãe que perdeu o filho em Itália e que decidiu apontar o dedo, baseada em provas fotográficas, à perversa sedutora conterrânea. Qual vingança tardia, um por um, os membros da família nuclear de Catherine, ficarão a par do seu segredo do passado. Se é que o segredo está exposto... .Adaptando o livro homónimo de Renée Knight, a série não conduz o espectador para um final extraordinariamente inesperado. Mas também apetece dizer que não é isso que importa: o labor de Cuarón reside na construção e desconstrução metódicas da narrativa, apresentada em fragmentos que ditam a verdade e as suas consequências instantâneas no universo da protagonista. Um gesto, ao mesmo tempo, dinâmico e perseverante num thriller psicológico que vai ao ponto de colocar uma narradora omnisciente a traduzir, volta e meia, os pensamentos das personagens, como se nesse modelo de transparência (e não deixa de nos ocorrer a translucidez dos vidros da casa de Catherine) estivesse um método de reflexão sobre a verdade interior. Essa que é mais difícil de confrontar quando a “verdade exterior” já tomou a dianteira e fez o seu serviço junto da opinião dos outros. .Diversões aleatórias.Sacha Baron Cohen: o drama não lhe cai nada mal..Depois, há aspetos tão curiosos como ver um certo ator desligado da corrente habitual... Se me perguntassem o que é mais intrigante nos primeiros minutos de Disclaimer, diria sem hesitação: o marido de Catherine/Blanchett. Entre o “conheço aquela cara” e a constatação, minutos mais tarde, de que se trata de Sacha Baron Cohen de óculos e postura “normal”, fica a pairar um espanto divertido. Quase uma sensação desconcertante de tentativa de encaixe. Como afastar a imagem mental de Borat, aquela personagem de comédia extrema? Talvez mostrando Baron Cohen a beber vinho na bancada da cozinha chique. .Mas, para além disso, esta é ainda uma série sabiamente frequentada por gatos. De cada vez que aparecem – e é mesmo em todas as cenas domésticas –, a sua presença funciona como ferramenta de tradução, mais uma vez, das inquietudes humanas. Veja-se como o felino cinzento de Catherine sobe para a mesa da cozinha, põe as patas na comida em preparação, ou como pausa ao lado da dona deitada na cama. Cuarón não filma este movimento de seda como qualquer coisa acessória para espectador amante de gatos ver. Filma-o com a noção de que o desassossego desses pezinhos de lã do felídeo imita o desassossego da mulher que sente o mundo a desabar mas não pode permitir que isso interfira com o requinte de um cozinhado para dois. Blanchett, escusado será dizer, é ela própria dona de um comportamento felino, frio, que se vai desmontando e exacerbando maravilhosamente. Enfim, Pura Coincidência é o que acontece quando se junta um realizador e uma atriz multi-oscarizados.