Desde que começaram a ser levadas ao ecrã, as aventuras gaulesas saídas da pena de René Goscinny e do lápis de Albert Uderzo têm tido resultados, no mínimo, desiguais. Como assim? Para simplificar, digamos que, em comparação com os vários filmes de imagem real produzidos a partir da inabalável fé na popularidade das personagens, as animações têm sobrevivido bastante melhor à marca do tempo. Não apenas por assumirem uma qualidade mais familiar, através do desenho, mas porque é precisamente esse formato que permite fazer justiça à alegria visual da banda desenhada de origem, com todos os seus maravilhosos excessos de imaginação e movimentos sobre-humanos.Será com tal confiança que surge então Astérix & Obélix: O Combate dos Chefes, série de animação concebida por Alain Chabat (realizador de Astérix e Obélix: Missão Cleópatra, e a voz por trás de Astérix) que chega esta quarta-feira ao catálogo da Netflix, para juntar pais e filhos, ou simplesmente fãs, à volta do pequeno ecrã. Com apenas cinco episódios curtos, a adaptação do sétimo álbum de As Aventuras de Astérix, datado de 1966 (cuja primeira tiragem em França foi de 600 000 exemplares!), vem apetrechada de modernices e humor audaz, umas a piscar o olho aos mais novos, o outro a garantir o regozijo dos adultos.O coprotagonismo de ObélixPodemos, desde logo, notar que, ao contrário dos livros, o nome de Obélix tem cada vez mais presença nos títulos das adaptações. E a nova série não é exceção, desta forma sinalizando aquilo que vem a ser um dos temas recorrentes ao longo dos episódios: as zangas entre Astérix e Obélix, motivadas pela liderança natural do primeiro, que salva sempre o amigo das situações de bloqueio discursivo (por excesso de timidez), sem se aperceber de que este começa a sentir-se menorizado. O foco estará, por isso, na dupla e na sua dinâmica desde tenra idade – há mesmo um flashback que vai até ao ano 78 a.C. para mostrar a paz que reinava na Gália e como a amizade destes dois beneficiava de uma despreocupação quotidiana. É também nessa altura que vemos o druida Panoramix em ensaios para a sua mítica poção mágica... que então era apelidada de “poção trágica”, dado o número de tentativas e erro.O combate dos chefes, propriamente dito, refere-se a uma tradição gaulesa em que o chefe de uma tribo, ambicionando tornar-se líder de duas tribos, desafia o outro para um combate que determinará a submissão do vencido, juntamente com a sua comunidade. E é esta estratégia indireta que César tenta pôr em prática para subjugar ao domínio romano a aldeia dos irredutíveis gauleses, ao mesmo tempo que estes se encontram privados da poção mágica que os torna invencíveis: Panoramix foi atingido por um menir e ficou gagá, exibindo um quadro clínico que mistura perda de memória e loucura...Para quem conhece a história de ginjeira, há em Astérix & Obélix: O Combate dos Chefes detalhes que tornam a mensagem de resistência de um povo particularmente atual, e o comentário às novas sensibilidades particularmente hilariante. Veja-se, por exemplo, um comentador “televisivo” do combate, que não suporta os valores da civilização moderna (“Já não se pode massacrar ninguém sem se indignarem!”), ou um cartão de aviso para espectadores impressionáveis, que interrompe a cena de Obélix a comer avidamente um banquete, com informações de ajuda para quem sofre do mesmo distúrbio alimentar.Humor doidivanas não falta aqui, e até na banda sonora o espectro musical vai do jazz dos anos 40, com Buona Sera de Louis Prima, ao Mr. Bombastic de Shaggy, passando por uma sequência psicadélica que pode fazer lembrar Lucy in the Sky with Diamonds dos Beatles. Enfim, estamos num recreio de imaginação, que além do mais não pede licença para brincar com o tema da representatividade – algumas personagens foram adaptadas ao conceito diverso que agora se exige como parte da filosofia de produção –, e nem tem problemas em alterar ligeiramente a narrativa, como seja converter numa hipótese real a substituição do líder Abraracourcix por Obélix no ringue de combate. Por Tutatis!Edição especialImporta referir ainda que, à boleia da série, a ASA acaba de lançar uma versão especial do mesmo álbum, com tiragem limitada, onde se dedicam nada menos que 16 páginas exclusivas a material documental inédito proveniente dos arquivos pessoais de Uderzo e Goscinny, incluindo a reprodução da prancha publicada na revista Pilote (com Abraracourcix/Matasétix a anunciar, em conferência de imprensa, o início da própria publicação da história) e uma curiosidade sobre a prancha 34; isto sem esquecer o dossier sobre os bastidores de produção da série Netflix. Um autêntico regalo para os leitores aficionados..‘Andor’: a liberdade está a passar por aqui .George Sand, a mulher que escreveu e viveu perigosamente