Postal de Natal, uma mania da Inglaterra Vitoriana que o mundo "comprou"
No ano de 1843, uma oportunidade afigurou-se ao inglês Henry Cole, a de fazer dos votos de boas festas natalícios um negócio com margens apetitosas. Na era Vitoriana nascia o postal de Natal, novo campo para artistas e expressão das casas impressoras. Inglaterra adorou a ideia. Nas décadas seguintes, milhões de postais natalícios viajavam entre mãos. Gatos, cães, flores e fadas estavam entre os temas preferidos.
No Natal de 1995, as caixas de correio eletrónico fizeram-se portadoras de um novo tipo de mensagem. Na web, território então trilhado com travo a pioneirismo pelo cidadão comum, soavam as notificações de novo e-mail sob a forma de postal eletrónico. A cada novo dia, 19 a 20 mil e-cards viajavam desde os servidores do Mit Media Lab, instalado no norte-americano Massachusetts Institute of Technology, para a casa dos destinatários. Poucos meses antes, uma investigadora na área das novas tecnologias, Judith Donath burilou uma ideia que viria a revolucionar o futuro dos votos de Feliz Natal e Ano Novo. Judith, nascida em 1962, apresentou em 1994 um serviço online denominado The Electric Postcard. O princípio de operação do serviço era simples. O sujeito A acedia a uma base de dados de postais digitais alojados no site, editava-os a seu gosto, e enviava-os ao sujeito B. A facilidade do processo conquistou um número crescente de utilizadores. Primeiro, não mais de 10 a 20 a cada dia para, no ano de 1996, ascenderem a mais de um 1,7 milhões.
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Aquilo que para o século XX de Judith se apresentou como uma revolução na tradição de endereçar votos de boas festas, recriou volvidos perto de 150 anos, a invenção do postal de Natal no seu formato comercial em papel. A sua introdução no mercado alteraria o modo como, no século XIX, a Inglaterra Vitoriana, mais tarde outros países europeus e a América do Norte, enderaçavamjorge apreço e estima sob a forma de imagem e texto. Em 1843, Henry Cole, funcionário público inglês, também inventor sob o pseudónimo Felix Summerly (entre as suas criações conta-se a de um novo bule de chá), percebeu que o serviço postal britânico oferecia uma oportunidade comercial apetecível. O homem que comissionaria em 1851 a Grande Feira Mundial, em Londres, e primeiro diretor, em 1852, do londrino Museu Vitória e Alberto, viu oportunidade de negócio na massificação das cartas de boas festas enviadas no Natal.
Cole não era ilustrador, mas era-o o conterrâneo John Callcott Horsley, nascido em 1817, pintor de temas históricos alusivos aos séculos XVII e XVIII, inspirado em mestres como o holandês Johannes Vermeer. Callcott também era designer, pelo que a proposta de Henry Cole acolheu interesse. O ano de 1843 corria de feição ao pintor. Ganhara o concurso para a decoração de parte do interior do Palácio de Westminster, na capital inglesa, com um esboço que recriava a "Pregação de Santo Agostinho". Para o primeiro postal de Natal comercializado da história, John Callcott escolheu tema mais mundano. Pouco antes da quadra festiva, dois lotes de postais, um a cores, outro a preto e branco, perfazendo um total de 2500 exemplares, foram colocados à venda. No cartão de uma face figurava um tríptico de imagens: uma família numerosa saudava à mesa, ladeada por duas cenas de caridade. Tal como nos e-mails do século XX, o postal de John Callcott reservava espaços para os endereços de quem enviava e de quem o recebia. De resto, não mais do que uma simples mensagem "Feliz Natal e Feliz Ano Novo para vós". Henry Cole rejubilou ao perceber que vendera todos os seus postais, numa sociedade que fazia do Natal uma amálgama visual de novidade e nostalgia.
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No decorrer do século XIX, tinta, giz de cera, colagens, técnicas de impressão rudimentares e domésticas serviam de suporte a missivas endereçadas chegado o Natal. Parafernália que se juntava a outra matéria-prima efémera do quotidiano como recortes de jornais, cartões de visita, panfletos, flores secas, coligidos e organizados ao sabor de um dos deleites vitorianos: os álbuns de recordações. Memorabília que motivou concursos incentivados por editoras com vista a eleger os mais belos. A disseminação do postal de Natal forneceria, nos anos vindouros, inspiração e matéria-prima para um número crescente de cadernos de recortes.
Na era do vapor o postal "mecaniza-se"
Não obstante o bom acolhimento, o postal de Natal comercial aguardaria mais cinco anos, até 1848, para receber uma nova edição, dessa feita com o traço do pintor William Maw Egley. Um segundo postal que introduziu na simbologia natalícia o azevinho, numa época em que os temas religiosos rareavam nos votos natalícios. Flores, fadas, borboletas, insetos pousados em frutos silvestres, numa alusão à primavera e ao verão, por oposição à escuridão do inverno, angariavam predileção entre os compradores de postais, o mesmo acontecendo com cenários caricatos com gatos (uma afeição que o século XX trataria de catapultar para o vídeo na internet), antropomorfismos com cães e crianças em traje festivo.
Para artistas da época, como o paisagista George Dunlop Leslie, o postal de Natal significou um novo mercado onde emprestavam o seu talento. Também poetas como o laureado Alfred Tennyson e a menos conhecida Helen Burnside, puseram a sua verve ao serviço do postal. Helen, cujo trabalho incluía a escrita para a infância e letras para peças musicais, escreveu entre 1874 e 1900 perto de seis mil versos para postais de Natal. No mesmo período, a poetisa bateu-se por causas sociais, nomeadamente melhorar as condições de vida para as meninas surdas, não raro ostracizadas.

Na década de 1860, o postal de Natal Vitoriano não se afastava, no formato, dos congéneres que o antecederam, semelhantes a cartas de visita de orlas intrincadas, a mimetizarem bordados e com pequenas imagens em relevo. O florescimento de casas impressoras e de novas técnicas de impressão a cores, como a cromolitografia, impulsionaram o postal no decénio de 1870. As páginas dos jornais aguçavam a curiosidade ao anteciparem, nas semanas anteriores ao Natal, as novas coleções com lançamento de chancelas como a irlandesa Marcus Ward e as londrinas Hildesheimer & Faulkner e Benjamin Sulman. Trinta anos volvidos sobre a circulação do primeiro postal natalício, a peça mantinha-se como folha solta, sem dobra, profusamente ilustrada e com espaço para personalizar a mensagem a endereçar. A década seguinte engendraria uma complexidade crescente ao postal, sem que faltassem nos motivos impressos apontamentos em ouro e prata. Num tempo em que a energia a vapor impulsionava o novo império da máquina, o postal recebia nos anos de 1890 dispositivos mecânicos simples, impulsionados por molas ou por cordéis que ativavam partes móveis.
A obsessão do colecionador
A disseminação do postal de Natal e a multiplicação de temas e motivos impressos, estreou um novo ramo do colecionismo que teve um dos seus expoentes na figura de Jonathan King. Nascido em 1836, Jonathan dirigia com a sua mãe uma pequena oficina de fabrico de cartões. O trabalho era de minúcia, os postais habilmente recortados em renda de papel. O negócio familiar prosperava o que permitia ao artesão canalizar parte do rendimento para a aquisição de substanciais coleções de postais, entre eles os natalícios. Ao longo da sua vida, até 1911, Jonathan terá reunido perto de sete toneladas de postais. Estima-se que no período entre 1862 e 1895, o colecionador juntou duas centenas de milhares de postais, perdidos para um incêndio doméstico.

Menos robusta, embora sobrevivente para o presente, a coleção de postais de Laura Seddon, hoje ao abrigo da Universidade Metropolitana de Manchester, compreende mais de 32 mil peças da era Vitoriana, em concreto no período entre 1880 e 1890, assim como da era Eduardiana, entre 1901 e 1910. Os postais alusivos ao Natal, mas também à Páscoa e ao Dia de São Valentim, resultam de uma coleção compilada por perto de 30 anos por Laura Seddon. Aos 76 anos, a britânica tomou para si a tarefa hercúlea de catalogar as dezenas de milhares de postais, tendo como ponto de partida o livro de 1964, History of the Christmas Card, da autoria do impressor e professor húngaro, nacionalizado inglês, George Buday. Em 1992, Laura doou a sua coleção à já referida instituição universitária onde recebeu a honra de membro honorário. Entre os postais hoje disponibilizados para consulta encontra-se aquele que em 1843 firmou uma relação comercial entre Henri Cole e John Callcott. Um entre os 12 postais que não sucumbiram a uma viagem que cobre três séculos. Em 2001, um destes postais, na sua versão colorida à mão, foi arrematado em leilão pelo valor de 26 mil euros.
Valores inimagináveis para os idos de oitocentos numa Inglaterra que organizou uma "indústria" de caridade em torno de uma nova vida para o papel. Numa época em que o termo reutilização era uma invenção do futuro, mulheres dedicadas a obras de caridade recortavam laboriosamente as imagens de postais vencidos. Reuniam-nas em álbuns que contavam histórias entregues nas mãos de crianças em hospitais, orfanatos e missões.
dnot@dn.pt
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