Ainda não tinha dez anos e Júlio Pomar revelava já aptidão para o desenho e interesse nos acontecimentos mundiais. Na exposição Neorrealismos, ou a politização da arte em Júlio Pomar, é possível ver cadernos de esboços do pintor quando tinha sete, oito e nove anos, “raramente acessíveis”, com desenhos de um militar e de Adolfo Hitler, espelho do clima de guerra dos anos 1930. Júlio Pomar (1926-2018) tornar-se-ia artista, mas sempre politicamente inclinado. . “A pintura do Júlio Pomar foi sempre política, no fundo, e não se cingiu apenas àquele período do neorrealismo”, diz ao DN Mariana Pinto dos Santos, curadora desta mostra – juntamente com Afonso Dias Ramos – patente no Atelier-Museu Júlio Pomar, em Lisboa, até dia 2 de novembro,“Podemos pensar que a arte é sempre política e é muito política quando acha que não é. Mas aquilo que tentámos trazer foram obras que fossem diretamente políticas, que estivessem realmente a responder a questões políticas. E isso foi acontecendo, espaçadamente, ao longo da carreira artística do Júlio Pomar”, sublinha a investigadora do Instituto de História da Arte. Desta exposição será feito um catálogo, e ainda antes de terminar, entre setembro e outubro, será organizado um debate com artistas sobre a politização da arte. “Queremos que a obra do Júlio Pomar seja um mote para pensar a questão da politização da arte de uma forma mais vasta e trazê-la para os dias de hoje”, sublinha Mariana Pinto dos Santos. . Em exibição estão grandes obras do período neorrealista de Júlio Pomar, como o Almoço do Trolha (1946-50), Gadanheiro (1945) e Varina Comendo Melancia (1949). “São obras que são extremamente simbólicas daquilo que foi o neorrealismo em Portugal. Se tivéssemos que reduzir a uma lista muito sumária das pinturas icónicas desse tempo, estão aqui representadas. Era bastante claro para nós que isso era essencial, que uma pessoa viesse aqui e tivesse essa âncora, porque são as obras mais visíveis e mais emblemáticas”, diz Afonso Dias Ramos, também ele investigador do Instituto de História da Arte. “E que afrontaram a ditadura", acrescenta Mariana Pinto dos Santos. Algumas das telas expostas são poucas vezes vistas, como Os Carpinteiros (1955), pertencente à Associação Portuguesa de Escritores, e Marcha (1952), obra que é descrita por Alexandre Pomar, filho do pintor, como "uma alegoria política e um retrato de grupo, onde retrospetivamente se destaca a figura de José Dias Coelho, escultor e militante comunista que seria assassinado pela PIDE em 1961". .É possível ver também obras como Maria da Fonte (1957), Cegos de Madrid (1957), Mulheres na Praia (1950) e outras pinturas mais “dissonantes”, que os curadores também quiseram trazer para esta exposição. “Aquela obra que parece mais abstrata chama-se Pisa III [1961-1963], é de um colecionador privado. Ele fez uma série de três quadros, Pisa I, Pisa II, Pisa III. E o título é que nos dá a chave para percebermos que há mesmo uma representação de trabalhadores, de pessoas das camadas populares, a fazer uma coisa tradicional, que é pisar a uva para fazer o vinho. Mas não é uma coisa imediata”, aponta Mariana Pinto dos Santos, sublinhando que “mesmo essa linguagem neorrealista no Pomar vai mudando, não é constante”. . O termo “neorrealismo surgiu na imprensa em Portugal em 1938 “em defesa de uma arte que tinha que ter intervenção social e política, que devia ser de resistência”, inspirada no modelo soviético, mas também com outras influências. A palavra foi um “eufemismo” para o realismo socialista, que “seria censurado imediatamente”, diz a curadora. “Mas o neorrealismo, na verdade, nunca correspondeu àquilo que era o realismo socialista na União Soviética”, acrescenta.Afonso Dias Ramos sublinha que “é importante referir esta ideia, sim, o neorrealismo é bastante diferente do que era o realismo socialista, mas simultaneamente dentro do neorrealismo temos vários tipos de correntes, de variações, de inimizades, de antagonismos. E isso, de certa maneira, também acontece dentro da própria área do Pomar. É uma das várias razões pela qual tornámos o título plural, Neorrealismos”. .Ao longo dos anos, a forma como a política entrou na obra de Júlio Pomar alterou-se, acompanhando a evolução formal do seu trabalho artístico, que se tornou mais gestual, e que não o impediu de continuar a “comentar” acontecimentos políticos, tanto nacionais como internacionais, de vários períodos temporais.“Ele também foi mudando a sua linguagem e tornando esses comentários políticos ou comentários sociais com a sua arte mais subtis ou mais subservientes de uma experiência formal”, frisa Mariana Pinto dos Santos.O artista esteve preso em Caxias e alguns dos desenhos que fez lá estão expostos, de Mário Soares, Joaquim Namorado, “mas também o estivador, as pessoas anónimas, que não são reconhecíveis”. Também lá está a pintura Parlatório, uma reprodução da qual está no Museu Nacional da Resistência e Liberdade, em Peniche, e Resistência (1946), uma obra que foi apreendida pela PIDE. .Pode ver-se a tela Abriliberdade (1974), com o cravo e a figura feminina – “há uma ideia de associação de revolução, erotismo e liberdade sexual”, descreve Afonso Dias Ramos – mas vê-se também Guantanamo I (2004) ou a assemblage Faixa de Gaza (1997-2007).Em exposição estão vários tipos de trabalhos, também desenhos, gravuras, cartazes e ilustrações (para uma edição comemorativa do romance A Selva, de Ferreira de Castro, por exemplo). Júlio Pomar fez cartazes para assinalar os 20, 30 e 40 anos do 25 de Abril. “Este cartaz, o dos 40 anos, é sobre a troika e sobre o governo de Passos Coelho. Temos um ponto de interrogação sobre o 25 de abril e, noutros casos, uma figura de um burro. Temos um comentário político bastante mordaz com esses cartazes que ele faz nessa altura”, afirma a curadora. .O arco temporal da exposição é de 1943 a 2014. “Tivemos duas preocupações: em primeiro lugar, misturar tempos. Portanto, onde quer que estejamos na exposição, estamos sempre a ver décadas diferentes. E, em segundo lugar, misturar técnicas. Estamos sempre a olhar para obras que são, simultaneamente as canónicas do neorrealismo e para outras que já destoam um bocado, para estabelecer esse tipo de contacto”, diz Afonso Dias Ramos.Os curadores da exposição andaram também a explorar as reservas do Atelier-Museu, e resgataram uma obra que “parece completamente desfasada, mas que tem uma história curiosa”, revela Mariana Pinto dos Santos. Foi retirada de um baú e entregue ao museu pelo biólogo Mário Ruivo, ainda dobrada. “Só recentemente é que foi esticada, veem-se aqui as marcas, ou seja, passado meio século, sem se saber ao certo se estava bem preservada ou não”, acrescenta Afonso Dias Ramos.Trata-se de um obra que Júlio Pomar fez em 1945 para ilustrar uma palestra do biólogo. “Essa palestra foi dada no âmbito de uma série de tentativas de pedagogia do Movimento Unitário Democrático (MUD).O Pomar também pertenceu a esse movimento que unia vários outros de resistência à ditadura”, explica a curadora. O MUD fazia palestras pelo país para educar a população analfabeta. Nesta obra, que pode surpreender pelo tema, o que interessa “não tem a ver com aquilo que é representado, nem com a linguagem artística usada, que é bastante ilustrativa. A questão é para que serviu este trabalho – serviu para esta missão que era política, no fundo”, conclui Mariana Pinto dos Santos. .Mais uma exposição de projeto em “metamorfose” até ao fim do ano .Quadro do café A Brasileira leva à criação de técnica de restauro inovadora