Pintura barroca em Portugal fez historiadora palmilhar mais de 300 concelhos
Leonel de Castro/Global Imagens

Pintura barroca em Portugal fez historiadora palmilhar mais de 300 concelhos

Entrevista a Sónia Duarte, investigadora nas áreas da História da Arte e da Musicologia e docente na Universidade do Porto.
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Até junho, a Academia das Ciências de Lisboa leva a debate “A Arte do Azulejo em Portugal”, num ciclo de conferências online, de acesso livre. A 22 de maio (18h), Sónia Duarte, investigadora nas áreas da História da Arte e da Musicologia e docente na Universidade do Porto, apresenta o tema “Fontes e modelos para o estudo da imagem musical, sacra e profana, na pintura do azulejo em Portugal no século XVIII”. 

É autora da primeira base de dados de pintura barroca em Portugal com incidência na iconografia musical. Qual o alcance deste seu projeto? 
Este projeto foi concretizado no âmbito do meu doutoramento em História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trata-se do primeiro levantamento nacional de imagens de música pintadas e incidiu no tempo do Barroco.  Na verdade, faço a ponte entre o Maneirismo e vou até aos alvores do Rococó, com a descoberta de inúmeras cópias de Watteau nas nossas coleções públicas e privadas, de novas pinturas de José de Sousa Carvalho, em Borba, ou de Joaquim Manuel da Rocha, em Sanguedo, Santa Maria da Feira, de onde sou natural. É um trabalho lógico que vem no seguimento das investigações que venho a desenvolver nos últimos anos e que visa o cruzamento da história da pintura com a história da música em Portugal. Havia estudado música, e no âmbito de um mestrado em Musicologia Histórica, na FCSH/NOVA, concretizei o primeiro levantamento de imagens de música pintadas de forma sistemática e metódica do largo tempo do Renascimento. Retratos de músicos, cenas de dança, levantamento de instrumentos musicais e de notações, ambientes musicais, agrupamentos vocais e instrumentais estavam pintados e precisavam de outros modos de ver, de novos níveis de leitura. Mas  nesta altura havia feito uma base de dados em papel. Agora, apresentou-se a primeira costumizada e informatizada. Decidi, depois, continuar pelo Maneirismo em diante. E quando decido palmilhar novamente no caminho dedicado à investigação, escrevo à única pessoa que conheço ser capaz de orientar este trabalho, o Professor Vítor Serrão. Escrevi-lhe e disse que queria continuar a estudar a iconografia musical no limes cronológico sucedâneo, ele que conhecia já muito bem o meu trabalho e o meu perfil transdisciplinar. A resposta positiva veio logo. Sempre fui professora e na altura nem me ocorreu concorrer a uma bolsa de doutoramento. Mas já com meia centena de comunicações, artigos, conferências, e tendo sido confrontada com a ideia vinda dele, escrevi o projecto. E o projeto foi vencedor, a bolsa Fundação para a Ciência e Tecnologia, com o Artis – Instituto de História da Arte chegou, e permitiu-me uma dedicação exclusiva à investigação. E o que apresento hoje é o resultado desse investimento de tempo e dinheiro: concretizar a primeira base de dados de pintura com iconografia musical em Portugal. Dito de outra forma, cada pintura [a fonte primária] é analisada tendo por base a fonte secundária [gravura, desenho, outras pinturas] e associada a 27 campos de trabalho, como por exemplo, instituição, número de inventário, fortuna crítica, dimensões, autoria/escola, técnica, data, descrição. 

Trata-se de um projeto que a levou, ao longo de seis anos, a centenas de concelhos portugueses. 
Sim. Palmilhei mais de 300 concelhos, vendo e fotografando pintura, muita dela, ainda, inédita. Permitiu-me também ter uma noção exata do estado de conservação das pinturas, do desaparecimento de outras, e até ver pintura anónima a que atribui autoria. O projeto contou sempre com a orientação do Professor Vítor Serrão, com a coorientação do Professor Manuel Pedro Ferreira, com a Fundação para a Ciência e Tecnologia, com o Artis – Instituto de História da Arte, com centenas de guardadores de chaves e de memórias, de párocos, zeladores e zeladoras, de técnicos e assistentes dos museus. Lidei também com a inércia de alguns poucos funcionários de museus, e pude privar de perto com funcionários de museus ótimos que sabem-fazer e compreendem que sem os investigadores em campo o estudo da História da Arte seria, ainda hoje, mais incipiente. O trabalho de campo permitiu-me resolver, em parte, um problema que continuava a existir: saber que iconografia musical há em Portugal. Tem-se escrito algumas coisas sobre o tema, mas continua a não haver um inventário: como se faz um estudo, sem um inventário? Apresento seis mil motivos em mais de mil pinturas do largo tempo do Barroco, resolvendo esse problema: Que pintura há? Onde está? Qual o estado de conservação? Que motivos musicais estão representados? São motivos reais ou simbólicos? Naturalmente que são, na sua esmagadora maioria, simbólicos, como explano nas quase três mil páginas de tese de doutoramento “Imagens de música na pintura do tempo do Barroco em Portugal (1600-1750)”. 

Tão longo périplo motivou descobertas e revelações. Quer contar-nos alguns episódios? 
A maioria do trabalho de campo foi feito com o meu filho Gonçalo, que nasceu por entre as folhas da tese e que com a mamã palmilhou e fotografou as pinturas. Devo um agradecimento ao meu marido Rui. Num dos episódios, visitei a Igreja de Gondesende, Bragança, para fotografar uma gaita de foles. Fui muito bem recebida pela zeladora que havia estado a vindimar. Abre-me a porta e diz “Olhe, nós andamos a procurar a gaita de foles e do adufe na sacristia, no coro-alto, mas não há sequer memória da existência de tal coisa. Mas pode ver”. Entrei e olho imediatamente para a gaita de foles e o adufe, mesmo à minha frente. A zeladora, ficou confusa com o meu entusiasmo. Apontei e disse: “Está ali”. Acrescentei rapidamente: “esqueci-me foi de dizer que a gaita de foles estava pintada no tema da Natividade”. Ela pegou no telefone e os locais que estavam a vindimar acorreram à igreja para ver o que, há vários anos estava diante deles, mas nunca haviam achado valor. É muito importante o trabalho de campo e o diálogo aberto entre nós que investigamos e os locais. Percebi, de imediato, que naquele segundo passavam a ver com outros olhos o seu próprio património. Depois, começam as perguntas. Há pessoas que nos marcaram profundamente, devido à sua generosidade, curiosidade, simpatia. O levantamento de imagens de música na Rota do Fresco, a Rota do Românico; os Museus de Portugal; as coleções privadas; os párocos e técnicos que foram connosco aos locais de molho de chaves nas mãos, horas de conversa com os zeladores, guardadores de chaves e de memórias. Tenciono reescrever, um dia, as memórias de campo e as fotografias aos detalhes, à ruína a que fui assistindo de alguns cenóbios. Tive uma zeladora, que visitei mais do que uma vez, no Alentejo, em Alvito, que me pediu se lhe mandava uma fotografia nossa. Nunca tinha visto o seu rosto numa fotografia. Ou um grupo coral que ensaiava habitualmente num coro-alto e tinha por cima das suas cabeça a representação de uma lição de música, em Tresouras, uma viola de mão, um mestre de capela, e um livro de música pintado e nunca tinham visto. São pinturas de início do século XVIII. 

Propôs pela primeira vez um ensaio de termos musicais para o Barroco em Portugal. Como se consubstanciou esse ensaio? 
Uma tese nunca está terminada, dá-se por terminada. E escrever uma tese é uma etapa. Não a última etapa. Olhei atentamente para todos os trabalhos verdadeiramente transdisciplinares, para outros mais ou menos qualquer coisa, que se foram fazendo em Portugal, e apercebi-me que a lacuna nunca tinha sido resolvida. Sei bem que o Professor David Cranmer havia submetido dois projetos, que não tiveram parecer positivo. Sabia que não havia um dicionário de termos musicais para este tempo em apreço. Comecei a colocar-me questões. Como se chama a alguém que dança no tempo do Barroco? Como se chama a alguém que dá ao fole? Como se chama um violoncelo em Portugal no largo tempo do Barroco? As respostas surgiram após meses na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional de Portugal, no Arquivo da Irmandade de Santa Cecília, e comecei, assim, a compilar em definitivo e a colocar o termo lado a lado com as imagens de música que fotografei em Portugal. 

Também realizou o primeiro estudo português sobre Santa Cecília, padroeira da música. O que de admirável há na vida desta mulher e que particularismos apresenta a sua representação no nosso país? 
Santa Cecília é a padroeira da música, celebrada a 22 de novembro. Não havia um estudo em Portugal sobre a padroeira, pior ainda, era ignorada em estudos onde aparecia figurada. Eu tinha começado a fotografar a hagiografia ceciliana mas tinha guardado para me debruçar sobre o assunto, um dia. Mas como, habitualmente, participo nas jornadas de iconografia Musical em Madrid, a Professora Cristina Bordas Ibañez soube e convidou-me para integrar a base que se estava a construir. Para ali precisava de meia dúzia de linhas, para a minha tese de 27 campos de trabalho. Dediquei-me meses a fio à vida desta santa, à sua iconografia musical e ao levantamento de campo em Portugal que me revelou um número considerável de espécimes, sobretudo, na zona norte e centro do país. Padroeira da música de acordo com um discutível relato biográfico que nos indica que a virgem ouvira durante a sua boda o som de musica divina, Santa Cecília aparece-nos representada em caixotões do hagiológico estrategicamente colocados nos tectos de cenóbios, igrejas e capelas públicas e particulares. O estudo mais denso que publiquei é consultável na Revista número 14 do CITCEM/FLUP. 

Como contextualiza o azulejo nesta sua abordagem singular ao território?  
O azulejo é uma manifestação artística de grande relevo, que exerce fascínios e que merece ser memoriada. Há dias, abordei os primórdios do azulejo em Portugal, numa das unidades curriculares que leciono na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Notei que os alunos querem saber mais sobre esta arte para além de Jorge Colaço [Estação de S. Bento] ou Júlio Resende [Ribeira Negra]. No terreno, creio, ter levado à abertura de uma janela azulejar para se revelar um alaudista pintado a fresco na parede testeira de uma igreja. Mas mais importante que isso, pude fotografar dezenas de azulejos de norte a sul do país, incluindo ilhas. Conclui que a fonte secundária que serve de modelo e molde à pintura é a mesma que se usa pelos pintores de azulejo. Por vezes é copiada na íntegra, outras vezes citada. E é este trabalho hercúleo de fontes e modelos que faz com que a História da Arte considere que este trabalho é necessário, pertinente e vem no momento certo para contribuir para o avançar dos estudos nesta área.  

Em particular, o que nos pode contar a propósito da intervenção que leva à conferência: “Fontes e modelos para o estudo da imagem musical, sacra e profana, na pintura do azulejo em Portugal no século XVIII”? 
Irei responder, por imagens tiradas in situ, o que é a iconografia musical, qual a sua função, qual a metodologia de trabalho que uso para chegar à terminologia, à fonte primária ou à fonte secundária. Mostrarei em que ponto de situação estão os estudos das imagens de música em Portugal: as notações musicais pintadas que sonorizei, os instrumentos musicais que se estão a construir, uma grande exposição em torno da retratística musical que já se desenhou e creio se concretizará no próximo ano. Concretamente, mostrarei fontes gravadas de Jacob de Gheyn II (para o esboço de Santa  Cecília), da incidência de cópias de Jan Muller, H. Wierix, Bonnart I, Pieter de Jode I, Collaert e Galle, Cornelis Cort, Lucas Vorstermann, Sadeler I, entre tantos outros, que se repetem nos azulejos. Vou demorar-me em pintores como Pasquale Parente que copia modelos gravados de Johannes Sadeler, por sua vez citado nos  azulejos de Alcanena (o azulejo subtrai sempre à fonte). Vou demorar-me, também, no refeitório de um cenóbio, mais propriamente numa alegoria onde Cupido atinge um alaudista que canta os seus amores e desamores, numa cópia não-integral a partir de Sadeler I (copiado, por seu turno, de Maerten de Vos). Deixarei comentários sobre azulejos que fotografei no país, entre eles, os de um cenóbio em Tábua que faz hoje parte da cripto-história da arte, sublinhando a importância do registo fotográfico e de medidas para a salvaguarda do património.

Próxima conferência dia 29
O ciclo de conferências A Arte do Azulejo em Portugal prossegue a 29 de maio (18.00 horas) subordinado aos temas Onde a História da Arte e a História das Técnicas Artísticas se encontram: os Azulejos do Claustro do Convento de Jesus e A Botânica no Azulejo em Portugal.

Acesso à conferência
Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/94839946250
ID Reunião: 94839946250

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