Perder a respiração com Vanessa Kirby
A Netflix a dar-se ao luxo no campo das experimentações. Porque pode, porque sim e porque, afinal, dá prestígio. Pieces of a Woman, teve até honras de Festival de Veneza, onde recebeu justamente o prémio de melhor atriz para Vanessa Kirby, e está agora na calha para a campanha dos prémios em que a mesma Vanessa tem grandes hipóteses, bem como a veterana Ellen Burnstyn num papel secundário. De forma ousada, deu-se luz verde ao casal húngaro Kornel Mundroczó e Kata Wéber (ele realiza, ela escreve e nos créditos iniciais aparece que o filme é de ambos) para fazer um filme art house de tradição húngara mas falado em inglês e situado nos EUA com personagens de descendência húngara. Um estudo sobre a perda de um filho num parto natural caseiro e as consequências devastadoras nos meses seguintes para o jovem casal, embora o olhar da câmara esteja sempre mais perto na figura da mãe, uma mulher que se vai alheando literalmente da vida. E é aí que a narrativa da proposta se afasta das fórmulas do melodrama clássico americano, seja do mais aparentado de Hollywood ou do sistema indie. A bem dizer, Pieces of a Woman não tem sistemas, move-se sem uma clara ideia de avanço cronológico dos acontecimentos e assume uma fragmentação quase abstrata do tom trágico da história, mesmo quando no epílogo experimenta as regras do filme-de-tribunal. O efeito que se cria causa uma refrescante desorientação no espectador, sobretudo quando aciona uma frieza que é sempre sensual e capaz de provocações como um diálogo sobre os White Stripes no meio de uma cena de reencontro familiar supostamente "sentimental".
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Mundroczó e Wéber coreografam o filme com entradas de cena que remetem para uma tradição moderna de teatro e aí convém lembrar que o realizador é tão ou mais famoso como encenador. Mas se há teatro aqui é algo que convoca uma energia muito selvagem. Uma selvajaria que fica bem com a interpretação agressiva de Shia LaBeouf, que por estes dias está nas bocas do mundo pelas acusações de violência doméstica contra FKA Twigs.
Seja como for, Pieces of a Woman é todo da poderosa Vanessa Kirby, atriz britânica que já tinha brilhado em The Crown. Ela dá tudo o que tem num festival de sofrimento que é tudo menos gratuito e no qual se pressente uma força feminina interior muito própria. Trata-se de um furacão de dor que dispensa qualquer tipo de filtros.
O que é mais injusto neste momento é reduzir os méritos do filme ao seu arranque, em que num longo plano de 23 minutos assistimos sem cortes ao fatídico parto natural caseiro desta personagem. Claro que se trata de um momento de cinema tão arrepiante como cru, mas há mais cinema para além desse choque tremendo que se apresenta como uma "prova" física ao próprio espectador. Certo é que depois disto os partos caseiros passam a ser vistos de outra forma, da mesma maneira que nunca mais olhámos do mesmo modo para um túnel subterrâneo depois da violação de Monica Bellucci em Irreversível, de Gaspar Noé. E é também garantido que Pieces of a Woman é estritamente interdito a grávidas...