O Festival de Cannes 2020 não se realizou mas teve uma seleção "oficial" e esta surpreendente comédia romântica francesa recebeu carimbo. Um justo carimbo: a segunda longa-metragem de Caroline Vignal é um bom exemplo de uma possibilidade de fazer rir sem comprometer inteligência e personagens com espessura humana..O Meu Burro, O Meu Amante e Eu/ Antoinette dans Les Cévennes é um retrato de uma mulher em crise amorosa, um retrato com tempos dramáticos substanciais mesmo através de uma capa de comédia. A mulher em questão é Antoinette, uma professora primária que decide nas férias fazer uma caminhada de burro pela zona das Cévennes. Ao fim ao cabo, Antoinette está nesta aventura para secretamente esbarrar com o amante, um homem casado que está a fazer este circuito com a sua família. Para Antoinette, lançar-se sozinha pelos bosques deslumbrantes da região é também uma forma de auto-descoberta, uma espécie de circuito iniciático para fazer uma reflexão acerca da sua condição de mulher apaixonada pela vida. De facto, a sua primeira paixão vai ser Patrick, o teimoso burro que lhe calhou no destino. Patrick parece ser um verdadeiro conselheiro espiritual, um ouvinte que se torna num companheiro fiel, mesmo quando finalmente se cruza com Vladimir, o amante. A partir daí, surge uma epifania e Antoinette repensa toda a sua atração com este homem comprometido e pai de uma das suas alunas..A câmara de Vignal evita o gag fácil e é quase sempre eficiente na forma como respeita a lógica do "buddy movie", neste caso sempre em movimento. Um filme-de-estrada num bosque e à velocidade do galope de um burro mais inteligente do que parece. Ode ao impulso feminino e a uma ideia de liberdade francesa, estamos ainda e, mais do que nunca, na presença de uma narrativa que sabe jogar com o carisma dos atores, em especial da protagonista, Laure Calamy, magnífica presença num trabalho tão físico como interno sem forçar a nota. Diga-se, já agora, recompensado com o César de melhor atriz. A direção destes atores de imensa qualidade permite também interpretações muito dignas de Benjamin Lavernhe (em breve vamos poder vê-lo em The French Dispatch, de Wes Anderson e em Le Discours, de Laurent Tirard), ator muito em demanda no atual panorama francês, e o luso-francês Jean-Pierre Martins, impagável motoqueiro que se cruza com a heroína e fá-la repensar os clichés da atração pelos homens viris....Paralelamente, esta mulher em busca de uma liberdade interior está guiada por um conceito de perseguição de um fascínio literário, neste caso, as pisadas de Viagem com um Burro em Cévannes, do escocês Robert-Louis Stevenson, que em 1879 inventou este percurso romântico numa das zonas mais mágicas do interior francês. Como se um capricho das letras fosse um fio condutor de uma mudança de vida...Acima de tudo, Antoinette e o espetador são seduzidos pela delícia dos prazeres campestres, de uma outra velocidade e em simbiose serena com um mundo verde e puro. O convite aqui é para escapar, fintar a vida real e mergulhar na paisagem bucólica, mesmo que isso implique acidentes como uma entorse ou uma dormida ao relento da floresta... Mas também a reflexão sobre o peso do adultério e a autodeterminação feminina..Contido e equilibrado, o trabalho da realizadora sabe também sempre ter em atenção o espaço da Natureza. Vignal filma este percurso (de Monastier a Saint-Jean-du-Gard são cerca de 200 km) não como uma câmara de turismo, mas com um olhar que dá tempo para haver um cuidado expresso na forma como se integram esses elementos do bosque, dos vales e da montanha. Não deixa de ser raro num filme pensado para as bilheteiras haver esse detalhe de ficar ao nível do espaço verde que rodeia a ação. Nisso é importante uma fotografia que usa cores e luzes naturalistas e um respeito máximo por uma composição de plano exata e sem baldas. De certa forma, é precisamente por aí que o filme ganha um peso romântico leve sem ser ligeiro. E se o humor é quase sempre contido, passa também por aqui um desejo de liberdade, mesmo quando se pode confundir com libertinagem: a certa altura, projeta-se a fantasia de se fazer amor ao ar livre numa noite no campo ao luar. Voilá! Um filme de verão pode ser isto, deve ser isto... Vaudeville rural ou conto de uma emancipação feminina (sem ser feminista, cuidado...), O Meu Burro, o Meu Amante e Eu é mesmo para ser visto nestes dias quentes e fazer com que fiquemos com vontade de caminhar, com ou sem um jumento ao lado..Em França, mesmo com pandemia, é dos filmes mais vistos dos últimos tempos. Quase um milhão de pessoas aderiram a este humor suave. Um verdadeiro fenómeno que poderia ter sido maior se depois as salas não tivessem fechado graças a novas restrições. Trata-se de uma exceção à regra das comédias populares imbecis, em especial aquelas a obedecer fórmulas mais recentes em que o cinema dá lugar a projetos audiovisuais comandados por celebridades televisivas, em particular vindas do mundo da comédia "stand-up"..dnot@dn.pt