Lê-se como um romance - dos bons, entenda-se - mas a sedução da escrita não compromete o rigor com que se desenrola o fio de vida da protagonista. A Desobediente, último título da coleção de biografias publicadas pela Contraponto, dá-nos a ver a poetisa, escritora, jornalista (de vários títulos, entre os quais o DN) e ativista política Maria Teresa Horta, desde a sua conturbada infância nas décadas de 1930 e 1940 à atualidade, quando a solidão e a velhice lhe cercam os dias, mas não as preocupações com o destino das mulheres portuguesas. Para isso, a escritora e jornalista Patrícia Reis dedicou-lhe perto de cinco anos de trabalho exaustivo, em que leu e viu tudo sobre Teresa, para além de ter passado longas horas de conversa com a própria e ainda com dezenas de pessoas que, em algum momento e em diferentes circunstâncias, com ela privaram. O resultado não é um texto laudatório, mas uma saga em que as humanas contradições convivem com uma persistente desobediência, sempre em prol da justiça. Esta não é a primeira biografia que escreve (já tem outras, de Simone de Oliveira e Maria Antónia Palla) mas é a de maior fôlego. Quais são os desafios de escrever a biografia de alguém que está vivo e que tocou a vida de tanta gente, que, em boa parte, também está viva? É uma ideia louca. Não é a primeira vez que faço uma biografia, mas foi a última. O primeiro desafio foi a própria Teresa, que é uma pessoa muito especial. Admito que, ao começar o trabalho, eu não tinha noção da responsabilidade e do peso emocional que isto significaria para a própria biografada e para as pessoas que deram o seu testemunho. Com a Maria Antónia Palla, foi um texto diferente porque foi escrito pelas duas e, no caso da Simone a história era-me contada só por ela. Embora eu tivesse feito muita pesquisa, digamos que a única voz pertencia à Simone. Não é o que se passa com este livro, que tem a colaboração da Teresa, mas é um trabalho jornalístico. Sou amiga dela há mais de 20 anos, o que me dificultou muito a tarefa de encontrar o ponto de equilíbrio, bastante instável, diga-se, entre o que podia e o que não podia fazer. A mim, nunca me interessaram histórias de alcova. Não é esse o propósito da biografia..Houve pessoas que não quiseram falar? Houve e houve algumas, que tendo falado, pediram para não escrever o que me estavam a contar porque a Teresa está viva. Essa é uma dificuldade: As pessoas não quererem melindrar a biografada. Mas eu não podia escrever um texto laudatório porque uma pessoa não é só boa. A Teresa é muita coisa e nunca evitou o conflito, que, como diz o próprio filho, é algo que lhe dá combustível. Nunca foi uma mulher consensual, até porque, em Portugal, uma mulher que não se cale, nunca o será. É considerada uma chata. Se for feminista, pior ainda. Acho que a maior dificuldade foi essa. .Embora ela sempre se tenha exposto muito… Está tudo nos livros dela. Não é o mesmo nível de exposição cruel que encontramos na Marguerite Duras, mas está lá tudo, tanto na poesia, como na ficção. Fala da mãe, do pai, da avó, da sensação de carência e abandono, a sensação de ser votada a uma certa invisibilidade, sobretudo no pós 25 de Abril, o que não deixa de ser curioso. Encontrar este fio foi o mais complicado. Houve uma altura em que eu pensei que ela ia deixar de falar comigo e isso ser-me-ia insuportável..Quando é que começou a trabalhar no livro? Em 2019..Com a pandemia pelo meio e a morte do marido dela, o jornalista Luís de Barros, antigo diretor do DN… Houve uma altura em que ela me disse que não valia a pena continuar. E eu fui ao chão completamente. Tinha dois anos de trabalho em cima, centenas de horas de conversas com pessoas, caixas e caixas com documentos, teses universitárias, eu sei lá. Aí foi o meu filho mais novo, Henrique, que me disse que aquilo ia passar. E passou, mas eu não a queria perder: A Maria Teresa é uma mulher importantíssima para nós, mulheres jornalistas, mas também para todas as feministas e para a História da Literatura portuguesa. Mas foram anos difíceis: a pandemia, o confinamento, a morte do grande amor da sua vida, as consequências de duas quedas que fazem com que hoje se sinta insegura na rua, a solidão de tudo isto. Depois há nela a consciência de que as pessoas queriam muito vê-la vergar, mas recusa-se a dar-lhes esse gosto. A Teresa não verteu uma lágrima no velório do marido, mas a dor era imensa. E continua a ser..Os pais dela foram figuras determinantes, claro. Mas não pelo carinho ou pelo amor, pois não? Transmitiram-lhe sobretudo desamparo e desamor. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que ela se tornou feminista por causa da mãe. Ela é o primeiro exemplo de uma mulher que queria viver a sua vida e foi condenada pela sociedade e pela família a ser constantemente vilipendiada e humilhada. Acredito que muita da reivindicação de liberdade da Teresa passa pela Carlota de Mascarenhas, que era uma mulher deslumbrante e que rivalizava as suas toilettes com a Natália Correia, no Teatro de São Carlos. O pai, por outro lado, achava a filha mais velha muito estranha e não se cansava de o dizer. Em criança, as pessoas atiravam-lhe em cara que ela ia ser como a mãe, que ia ter muitos amantes, que não se calava. Era pesado. .E o pai dizia-lhe que tomasse conta da mãe. Horrível. Acho que se percebe bem a Teresa se conhecermos a sua infância, adolescência, o princípio da idade adulta..Qual foi o papel da avó feminista? A avó Camila foi determinante e foi também completamente mitificada pela Teresa - ainda hoje, todas as noites, ela se despede do retrato da avó. Deu-lhe várias coisas: as histórias, os livros. Permite-lhe descobrir o poder de cada palavra. A avó respondia-lhe a todas as perguntas, não fingia que não ouvia. E a Teresa tem uma certa mística, desde sempre. Olha para o avesso das coisas..Ela acredita no sobrenatural? Tem um lado místico, que não é comum naquela geração. Há um momento em que ela me diz: A dor foi tão grande que eu vi os móveis da sala a voar. E eu acredito que ela tenha sentido isso. É uma mulher também de uma grande imaginação e dramatismo, que a levou a construir a sua própria personagem. A avó também a levava às reuniões com as sufragistas, facto de que ela só se apercebeu quando a Maria Lamas lhe falou nisso, anos mais tarde. Tudo isto a marcou muito. A Teresa nunca se subjugou ao sistema, nem sequer ao do Partido Comunista. O Mário de Carvalho diz que ela foi sempre uma voz distinta dentro do partido. A verdade é que a revolução aconteceu, mas os princípios da misoginia e do machismo continuaram lá. Por outro lado, a felicidade não é uma coisa que lhe bata à porta porque ela está sempre do outro lado..Mesmo no casamento com Luís de Barros? Ela admite que o casamento dela foi uma construção, sobretudo dela. O filho diz que era ela que ia à escola, que ia às reuniões, preparava a comida, a mãe tudo. O pai era mais ausente..Aqui na biografia, conta-se que ele não a acompanhou nas sessões no tribunal, durante o processo das Três Marias, e não se sentia confortável com o papel dele na poesia dela. Sentia-se desconfortável com o papel de muso inspirador. Ele terá ouvido coisas muito desagradáveis nas redações por causa disso. Admitamos que não deve ter sido fácil viver 56 anos com uma pessoa como a Teresa. A Isabel do Carmo diz, com muita graça, que até à Teresa, as mulheres em Portugal só existiam até à cintura. O facto de não se ter calado não lhe granjeou grande popularidade junto dos jurados dos prémios, da crítica literária, da academia..Mas a repercussão internacional das Novas Cartas Portuguesas, escrito em parceria com Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, foi muito grande. Mesmo internacionalmente. A repercussão foi enorme. As Novas Cartas foram o mote do Congresso Feminista nos Estados Unidos. Mas, em Portugal, no dia 7 de maio de 1974, elas foram absolvidas e o livro passou de pornografia e atentado ao pudor a obra-de-arte. Mas depois desapareceu, como se alguém dissesse: Vamos fechar isto à chave. Em contrapartida, a Teresa envolve-se no movimento de libertação das mulheres até hoje. Durante o confinamento, a grande preocupação dela era com as mulheres que estavam presas em casa com homens com perfil de agressores..O 25 de Abril não mudou boa parte dos sentimentos misóginos que existiam na sociedade portuguesa, como já referiu, mesmo em meios de esquerda, nomeadamente no Partido Comunista, de que ela foi militante. Como é que a Maria Teresa viveu isso? Despertou-lhe um sentimento profundo de injustiça. Penso sempre na Teresa como se fosse a imagem do São Jorge a combater o dragão. Ela está permanentemente a combater aquela injustiça em particular, não a ideia em geral. Ela esteve na luta pela interrupção voluntária da gravidez do princípio ao fim. Ela reivindica a liberdade do seu corpo, mas também a propriedade. Persiste na desobediência e resistiu sempre a fazer o mais fácil, com consequências para ela própria. .E dava-se muito com a Natália Correia, embora muita gente previsse a inevitabilidade de um choque… A Natália sobretudo acha-lhe graça. Não creio que se tenha revisto na Teresa, mas esta era uma mulher singular, gira que se farta, que ainda hoje usa mini-saia, diferenciada. A Natália não a viu como uma concorrente, como os homens esperavam, mas viu-lhe a garra e o talento. Quem é que não gosta de uma mulher forte? Os homens. .O choque com o Partido Comunista nasce ainda com a revista Mulheres, dirigida por ela? Sim, há um lado muito puritano no PCP, que entra em choque com a sua personalidade e formação. Com o final de O Diário, a Teresa e o marido ficam no desemprego e escreveram os dois uma carta indignada ao Cunhal. Ela não gostava dele, o marido, pelo contrário, era fascinado. Mas, ao contrário do Luís, ela não entregou o cartão do Partido porque, diz, não quer que, um dia destes, venham dizer que a Teresa Horta nunca foi militante. Ela tem a prova..Como é que nasceu o livro Novas Cartas Portuguesas? A Teresa escreveu Minha Senhora de Mim, que é um livro de uma ousadia tremenda, e leva um enxerto de pancada na rua, acompanhado do aviso: Isto é para aprenderes a não escrever como escreves. É aí que a Maria Velho da Costa tem a ideia de escrever um livro a três. Hoje, só sabemos que a primeira carta é da Maria Isabel Barreno, mas o resto não sabemos. Aliás, acho uma grande arrogância as pessoas afirmarem que esta é de uma e aquela é de outra. Elas partilhavam tudo e contaminavam-se umas às outras. Por isso é que volto a dizer que é uma grande arrogância dizermos o que é de quem. .A própria PIDE tentou esse processo de diferenciação… A PIDE tentou que a Teresa se responsabilizasse pelas cartas piores. E depois, o Moreira Baptista, na altura ministro do Interior, tinha-lhe um ódio visceral. Disse à Snu Abecassis que se a Teresa escrevesse a História da Carochinha, ele proibiria o livro. Era aviltante para ele que uma mulher fizesse coisas, fosse coisas. Estava encerrado naquele triângulo que ainda hoje, em minha opinião, domina a sociedade portuguesa, segundo a qual as mulheres ou são Eva, Madalena ou Maria e o que esta sociedade ainda quer é uma Maria submissa, obediente e calada. Tudo o que a Teresa não é. Uma desobediente que esteve sempre do lado certo da História, das causas..E depois, um dia, decide escrever sobre a marquesa de Alorna, sua antepassada em linha direta, e publica uma obra monumental, que é As Luzes de Leonor. Em minha opinião, é uma obra-prima em qualquer lugar do mundo, mas, para mim, aquela Leonor é ela. Está lá a tensão entre a Leonor e o pai e muitos outros aspetos que encontramos na biografia da Teresa. É uma obra que não é igual a nada: Tem poesia, diário, misticismo e viagens. É tudo. E aquilo ser tudo significa que é a Teresa. Porque ela é tudo. Dou um exemplo: Quando as pessoas dizem que ela é a poetisa do erotismo, estão a ser redutoras. É muito mais do que isso. Infelizmente, como o filho diz na biografia, o reconhecimento dela é tardio e chega numa altura em que já não pode desfrutar como merece. Acredito que ela nunca terá o Prémio Camões e, no entanto, seria justo que o recebesse. Continua a ser uma mulher incómoda por vários motivos: a poesia do erotismo, os 14 anos de militância no PC, o não estar calada, o ser feminista convicta e ativa. Tal como a Natália, a Teresa é uma mulher fora da norma. É maravilhoso termos estas mulheres nas nossas vidas, mulheres que não se calaram só porque seria o mais conveniente. E, no entanto, ainda há tanto caminho a percorrer. .A Desobediente Patrícia Reis Contraponto Editores 424 páginas