É ainda nas páginas da introdução que se leem sinais de postura como estes: “Martin chega com um passo rápido e um sorriso de boas-vindas. Começamos a falar imediatamente (...)”; “O seu aperto de mão é tão caloroso como o seu sorriso”; ou “Tive a impressão de que este diálogo com Martin é um longo diálogo por etapas. Há um fio profundo que une as nossas palavras”. Nesses parágrafos introdutórios de Conversas Sobre a Fé, o jesuíta Antonio Spadaro descreve, para contextualizar o leitor, os diversos encontros que deram origem ao livro agora editado em Portugal pela Casa das Letras (numa tradução de Dinis Pires e Pedro Branco). E ao fazê-lo expõe uma característica muito particular do seu interlocutor, Martin Scorsese. A saber: a abertura para a palavra, o fascínio pela partilha de ideias e pelo desafio de se narrar, desde logo através do cinema. O cineasta de Tudo Bons Rapazes é, pois, um animal conversador, um corpo habitado por uma alma curiosa, disponível para a curiosidade do outro – e este será mais um precioso testemunho da sua alegria no diálogo. .Ao entrarmos pelo fio das perguntas e respostas que compõem Conversas Sobre a Fé sentimos então esse Martin de Italianamerican (1974), o documentário em que o próprio entrevista os pais de ascendência siciliana, ou de A Minha Viagem a Itália (1999), outra abordagem das suas raízes através da pura cinefilia. Um modus operandi de vivacidade portadora de conhecimento que, de resto, não deixa de se evidenciar em mais obras não-ficcionais, como Uma Discussão com 50 Anos (2014), sobre o vasto contributo intelectual da revista The New York Review of Books, e, claro, a série documental Netflix Faz de Conta que Nova Iorque É uma Cidade (2021), as deliciosas conversas de Scorsese com a escritora e amiga Fran Lebowitz, que ele já havia retratado no documentário Public Speaking (2010), tendo como motor o grande interesse pela inteligência moderna da autora, enquanto figura singular da cena nova-iorquina. .Isto no cinema. Mas é preciso lembrar que existe também um livro chamado Scorsese por Scorsese (Edições 70), nascido de um conjunto de conferências dadas pelo próprio nos anos 1980. Em suma, o prazer e a arte de (bem) falar é com ele... .E a graça acontece.Conversas Sobre a FéMartin Scorsese e Antonio SpadaroEdição Casa das Letras136 páginas.Em Conversas Sobre a Fé, Scorsese tem, por sua vez, como entrevistador um padre jesuíta. Os encontros começaram em 2016, estendendo-se até à última longa-metragem do realizador, Assassinos da Lua das Flores (2023) que ainda é abrangida como assunto –, e ocorreram entre Nova Iorque, Roma e o Vaticano, com o Papa Francisco a ser recorrentemente evocado nos diálogos. Scorsese, ele mesmo, privou com o chefe supremo da Igreja católica no período das conversas. .Cineasta católico, Martin Scorsese, hoje com 81 anos, assume a fé religiosa para além do termo “praticante”: o catolicismo atravessa-lhe profundamente a vida e o cinema, de formas mais ou menos inesperadas, mais ou menos legíveis ao espectador. É certo que o filme que motivou o primeiro encontro com Antonio Spadaro foi Silêncio (2016), naturalmente um projeto de cariz espiritual, baseado no romance homónimo do japonês Shūsaku Endō, mas algumas das passagens mais belas do livro têm que ver com reflexões sobre a pronunciada violência nos seus filmes, o modo como esta se liga às ruas do Lower East Side de Manhattan, onde cresceu, à compreensão precoce do mundo dos adultos e à manifestação da “graça” nessa fealdade destrutiva – graça é, aliás, uma palavra repetida várias vezes, como expressão que contém uma específica vivência da fé. .Ler as réplicas de Scorsese às questões complexas do italiano Spadaro corresponde, assim, ao traçar de uma linha biográfica que se mistura com múltiplas referências fílmicas, dentro ou fora da sua obra, como se o pensamento do realizador veterano viesse com o som de uma bobina em fundo. Ao longo das páginas temos vislumbres da sua imensa cultura, paixão cinéfila e busca incessante por matérias de reflexão, sempre com o ser humano no centro, e bem definido pela impureza: “O humor nos meus filmes vem das pessoas e do seu raciocínio ou da falta dele. Da violência e profanação da vida. Da mundanidade, se quisermos ser educados sobre o assunto. A profanação e a obscenidade existem, o que significa que fazem parte da natureza humana. Não quer dizer que sejamos inerentemente obscenos e profanos – quer dizer que esta é uma forma possível de sermos humanos”, Scorsese dixit. .Numa era em que é difícil não cair em maniqueísmos, Conversas Sobre a Fé devolve-nos o conforto do contacto com uma visão espiritual perfeitamente consolidada no homem de carne e osso, num Jesus que é “toda a humanidade”. .E por falar em Jesus, é mesmo com um argumento para um filme sobre Jesus que o livro encerra. Mais precisamente, o esboço de um guião escrito por Scorsese, impulsionado pela leitura de um prefácio do Papa Francisco ao livro Uma Trama Divina, de Spadaro. Aguarda-se o filme. Por enquanto, o cinema palpita nesta viagem pelas noções da fé segundo o homem que nos deu A Última Tentação de Cristo. Corpo e sangue, carne e espírito.