É bem verdade que o legado cinematográfico de Jean-Luc Godard (1930-2022) pertence, antes de tudo o mais, ao espaço clássico das salas de cinema - essa é, aliás, uma marca emblemática da Nova Vaga francesa, de que ele foi um fundamental protagonista. Mas não é menos verdade que, muito cedo (a partir da chamada “fase militante”, em finais da década de 60), Godard mostrou-se disponível para as aventuras de produção do pequeno ecrã, aliás ocupando um lugar insubstituível na história das relações cinema/televisão. Ironicamente ou não, podemos agora descobrir uma parte importante da sua filmografia nos nossos ecrãs caseiros: são 11 títulos disponíveis na plataforma Filmin.São filmes que estiveram nas salas com chancela da Leopardo Filmes, 10 deles em reposição e um em estreia. Isto porque, ao longo de quase quatro décadas, Detective (1985) mantivera-se inédito no circuito comercial português. Durante um breve período, chegou a estar disponível na Netflix (com o título Mafia em Paris), num contexto bem diferente - de facto, sem qualquer contextualização, já que foi mais uma pérola cinéfila que a Netflix tratou com ostensiva indiferença promocional. Agora, pelo menos, estamos perante uma aposta na criação de um evento especial no “streaming”, aliás rotulado por uma expressão que podia fazer parte do imaginário “godardiano”: “Cinema sem limites”.O período da Nova Vaga está muito bem representado, desde logo através de O Acossado (1960), tradicionalmente apontado como um dos títulos da trilogia que iniciou o movimento, a par de Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais (ambos lançados em 1959). A seleção propõe mais sete longas-metragens do mesmo período, até Made in USA (1966). Além do já citado Detective, o panorama inclui ainda dois títulos que, em décadas posteriores, ilustram o empenho com que Godard nunca deixou de ser um genuíno experimentador: Nome: Carmen (1983) e Valha-me Deus (1993)..Tudo isto, importa não esquecer, surge a par de mais seis filmes de Godard que já estavam (e continuam) no catálogo da Filmin. Um deles, Fim de Semana (1967), pode ser considerado como aquele que encerra, simbolicamente, a Nova Vaga. Os Ventos de Este (1969), Vladimir e Rosa (1971) e Tudo Vai Bem (1972) são momentos da “fase militante”, sendo o último deles um ambíguo e fascinante regresso aos elencos das grandes vedetas (Jane Fonda e Yves Montand).A oferta termina com as duas longas-metragens finais de Godard, Adeus à Linguagem (2014) e O Livro de Imagem (2018), estreadas em sala pela Midas Filmes: nelas se espelham os equívocos da nossa comunicação e, sobretudo, a amargura da nossa incomunicação. É em O Livro de Imagem que Godard cita algumas palavras de Montesquieu que poderiam funcionar como princípio ético e estético do seu próprio trabalho: “Julgar-me-ia o mais feliz dos mortais se pudesse fazer com que os homens pudessem curar-se dos seus preconceitos - chamo aqui preconceitos, não o que faz com que se ignorem certas coisas, mas o que faz com nos ignoremos a nós mesmos.”.Uma coleção “godardiana”.O ACOSSADO (1960) Na abertura deste À Bout de Souffle, Jean-Paul Belmondo olha para a câmara, nomeia várias paisagens (o mar, a montanha...) e pergunta se são coisas de que gostamos - se não gostamos, então, diz ele, “vão dar uma volta” (tradução begnina). A Nova Vaga quebrava as regras clássicas, incluindo a interdição de falar “para” o espectador, tudo isso envolvido em memórias cinéfilas do classicismo de Hollywood, a começar pelo filme “noir”: Belmondo era um Humphrey Bogart vencido por uma angústia sem fim..UMA MULHER É UMA MULHER (1961) Esquecemo-nos, por vezes, que a herança que Godard recolhe no cinema americano, além dos registos mais dramáticos, também inclui o musical e, mais especificamente, a comédia musical. Eis o exemplo esclarecedor, com o contributo precioso do compositor Michel Legrand (que, na mesma época, começava a sua colaboração com Jacques Demy). É uma das sete longas-metragens em que Anna Karina foi dirigida por Godard, neste caso contracenando com Jean-Claude Brialy e Jean-Paul Belmondo..O SOLDADO DAS SOMBRAS (1963) Le Petit Soldat no original, foi o primeiro filme em que Godard dirigiu Anna Karina, ainda em 1960, mas a sua difusão seria interditada devido às referências à guerra da Argélia, em particular com a inclusão de algumas cenas de tortura - só chegaria às salas francesas três anos mais tarde. Em boa verdade, através da personagem de Michel Subor a dimensão política não pode ser dissociada da discussão de um tema “godardiano”, por excelência: o valor das imagens e a verdade que transportam..OS CARABINEIROS (1963) As personagens principais vivem a experiência brutal da guerra, mas, além da abstração geográfica, os seus nomes são Ulisses, Miguel Ângelo, Vénus e Cleópatra... Sempre marcada pela atualidade política, a narrativa de Godard experimenta, aqui, os artifícios da parábola moral centrada nos pobres soldados que se envolvem nos combates porque acreditam que serão recebidos com riquezas monumentais - o efeito simbólico é tanto mais perturbante quanto o filme simula a fluência de um documentário..O DESPREZO (1963) Baseado no romance de Alberto Moravia, Le Mépris (Contempt na versão em inglês) continua a ser o mais universal cartão de visita da filmografia de Godard. Para os que associam a sua obra, e até mesmo a Nova Vaga, a uma austeridade expressiva alheia ao “star system”, vale a pena contrapor o óbvio: num dos papéis centrais está Brigitte Bardot, na altura não apenas um dos nomes mais populares da produção francesa, mas também uma estrela de dimensão internacional. Ela surge como a mulher de um argumentista, interpretado por Michel Piccoli, que nos cenários paradisíacos da ilha de Capri colabora numa adaptação da Odisseia, de Homero, sob a direção de Fritz Lang. Pormenor fundamental: o mestre germânico Lang, também ligado às glórias clássicas de Hollywood, interpreta o seu próprio papel, num jogo de espelhos que se confunde com uma reflexão mágica sobre a própria criação artística. O tema musical, assinado por Georges Delerue, adquiriu uma dimensão lendária, tendo surgido em vários filmes de outros autores - exemplo: Casino (1995), de Martin Scorsese..ALPHAVILLE (1965) Eis uma nova parábola política, agora numa ditadura que suprimiu os conceitos de “amor” e “poesia”, com o americano Eddie Constantine a interpretar o agente secreto Lemmy Caution (personagem que, por essa altura, protagonizara em várias produções europeias). Com uma prodigiosa fotografia a preto e branco assinada por Raoul Coutard, Lemmy acompanha a frágil Natacha, isto é, Anna Karina, cuja libertação emocional e política começa com a leitura dos poemas de Capitale de la Douleur, de Paul Éluard..PEDRO, O LOUCO (1965) Lançado a meio da década de 60 (a estreia portuguesa ocorreu em 1966), este é o título que mais e melhor simbolizou a energia criativa de toda a Nova Vaga. Jean-Paul Belmondo e Anna Karina atravessam as paisagens francesas, cumprindo as etapas de uma errância existencial que tem tanto de utopia filosófica como de desencantado protesto contra as misérias da sociedade de consumo - é uma história de amor e morte, essencial para compreendermos um tempo em que, trágica ilusão, tudo parecia possível..MADE IN USA (1966) Derradeira longa-metragem com Anna Karina, eis o filme que o próprio Godard definiu como “Walt Disney com sangue”. Tradução possível: uma aventura de muitos artifícios cénicos e personagens imaginárias que, em qualquer caso, espelha as convulsões políticas e morais de um tempo de cruéis incertezas. É um parente próximo de Duas ou Três Coisas Sobre Ela (1967), este uma versão mais crua sobre o impasse existencial da sociedade de consumo - em ambos os casos, predominam as cores da Pop Art..NOME: CARMEN (1983) Objeto radicalmente poético, arrebatou o Leão de Ouro de Veneza, por certo a distinção mais sonante que Godard obteve no circuito dos festivais. O mito da Carmen de Mérimée (mais do que da ópera de Bizet) transfigura-se em conto moral sobre um mundo em que os laços geracionais já não funcionam. Godard “inventou” uma atriz transcendental ao entregar o papel de Carmen à holandesa Maruschka Detmers; ele mesmo assume o papel do “Tio Jeannot”, um lunático que é também um cineasta falhado....DETECTIVE (1985) Com autoironia q.b., cruzada com a mais pura objetividade, Johnny Hallyday explicou porque é que ele, estrela do rock’n’roll, para sempre ligado aos êxtases e frustrações dos anos 60, aceitou filmar sob a direção de Godard - a explicação não podia ser mais simples: assim tinha “a certeza de ficar na história do cinema”. Eis uma sugestiva entrada na narrativa deste sublime Detective, objeto maldito cuja maldição se enraizou num triste pecado: a indiferença dos mercados cinematográficos. Contracenando com Nathalie Baye, na altura sua companheira, Hallyday é um empresário do mundo do boxe apostado em conseguir um bom combate para o seu pupilo, visando uma receita que lhe permita pagar as suas dívidas... Tudo acontece num hotel de Paris, filmado como uma catedral em cujos corredores e suítes se vivem as tragédias de um mundo mercantil que passou a excluir qualquer forma de proximidade amorosa - Godard assumia o génio criativo de um modelo de cinema que, como se provou, a indústria estava apostada em destruir..VALHA-ME DEUS (1993) Se necessitamos de uma definição imperfeita, mas sugestiva, para este fascinante Hélas pour Moi, talvez possamos considerar que se trata do mais enigmático dos filmes de Godard, de algum modo exponenciando a ambivalência figurativa do sagrado tal como surgira em Eu Vos Saúdo, Maria (1985). Assumidamente inspirado pela mitologia grega, nele assistimos a um jogo perverso entre o humano e o divino, aí onde todas as fronteiras simbólicas vacilam - o corpo e rosto de tudo isso é Gérard Depardieu.