Pamela B. Green: "Alice Guy-Blaché transformou-se num ícone da cultura pop"
O que têm em comum Julie Delpy, Peter Farrelly, Geena Davis e Peter Bogdanovich? No início do documentário de Pamela B. Green, nenhuma destas figuras de Hollywood tinha ouvido falar de Alice Guy-Blaché (1873-1968). É particularmente impressionante ver Bogdanovich, realizador estudioso do cinema que escreveu um livro sobre Orson Welles, entre outros, assumir a sua ignorância diante da câmara... Enfim, não há que ter vergonha. Foi para resolver a lacuna coletiva que nasceu Be Natural - A História Nunca Contada de Alice Guy-Blaché, filme-investigação narrado por Jodie Foster que dá a conhecer aquela que é considerada "a primeira mulher realizadora da história do cinema", tendo assistido à primeira projeção privada (antes da oficial) do Cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Tinha 22 anos.
De secretária do fundador da mais antiga produtora cinematográfica, Léon Gaumont, em França, a detentora do seu próprio estúdio, Solax Company, nos Estados Unidos (antes de Hollywood), Alice passou da indústria francesa para a americana deixando cerca de mil filmes realizados em pouco mais de duas décadas - a sua primeira curta-metragem, A Fada do Repolho, data de 1896. Mais do que a magia das imagens em movimento, interessava-lhe as suas possibilidades narrativas e ficcionais. É-lhe associado o uso pioneiro do cronofone (sincronização de som), efeitos especiais e uma filosofia que imperava nas rodagens: "Be natural." À letra, "interpretem com naturalidade." Um conselho para os atores que estava bem visível num letreiro do seu estúdio.
Be Natural, o documentário, conta-nos a odisseia de uma mulher com um génio e uma criatividade verdadeiramente espantosos, capaz de pegar nas questões sociais mais sérias e aplicar-lhes um golpe cómico ou uma visão assertiva. É muita a informação aqui trabalhada, um percurso intenso e didático, entre uma nova história oficial e um plano mais íntimo da biografada. E para esse fascínio da sua proximidade contribuem os excertos de arquivo de duas entrevistas filmadas com Alice Guy-Blaché em 1957 e 1964 - há muita vida naqueles olhos, e alguma tristeza contida pelas imprecisões históricas do seu legado, que tentou corrigir. Ao DN, a americana Pamela B. Green assegura que a recuperação e reescrita da(s) memória(s) de Madame Blaché veio para ficar.
O documentário deixa claro o momento em que decidiu pesquisar sobre Alice Guy-Blaché. Mas o que é que a fez embarcar numa viagem desta dimensão?
Eu percebi que para a história de Alice ressoar num público mais amplo e moderno precisava de encontrar material novo e contextualizar a jornada dela. Quase que podia ouvi-la dizer-me: "Estou a ser retratada erroneamente. Há mais sobre mim. Ajuda-me a contar a minha história." Ela foi uma pioneira, uma empreendedora, uma durona! E, da minha parte, quando estou apaixonada por alguma coisa dou o máximo, não consigo evitar... Não podia deixar nenhuma pedra por levantar. Senti como se estivesse a passar a pente fino a lista de contactos e as memórias dela na tentativa de apanhar o rasto de qualquer pessoa mencionada e encontrar descendentes. Para além disso, encorajei as pessoas dos arquivos, que achavam que não tinham nada de relevante sobre ela, a dar outra vista de olhos: identificámos 12 filmes de Alice Guy-Blaché, que eram considerados "órfãos" [de realizador desconhecido], foram encontradas lâminas de vidro e muitos outros materiais a suportar o relato das suas realizações.
Quanto tempo demorou, ao todo, o processo de pesquisa e a realização do filme?
Cerca de dez anos.
Muitas das personalidades do cinema entrevistadas aqui falam sobre aspetos que consideram extraordinários na arte de Alice Guy-Blaché. E a si, o que é que a atraiu mais?
Eu não conseguia acreditar na modernidade dos assuntos plasmados nos filmes - abuso infantil e conjugal, imigração, antissemitismo, classe, raça, gravidez e empoderamento feminino. Já para não falar que fez um filme com um elenco totalmente composto por negros! E a lista continua... Às vezes é difícil acreditar que ela existiu, tendo em conta tudo aquilo que foi capaz de realizar naquela altura.
Há outra coisa que é muito à frente do seu tempo em Alice Guy-Blaché. O conselho que dava aos atores: "Interpretem com naturalidade." Estamos a falar de cinema mudo, em que os gestos e maneirismos eram naturalmente exagerados, mas, com o tempo, as interpretações tornaram-se mais "naturais". Acha que parte do seu legado está nesta abordagem?
Sem dúvida. Foi radical! E junta-se a isso os tais temas que ela escolheu, para além dos realizadores que instruiu ou influenciou [Serguei Eisenstein, Alfred Hitchcock], como é revelado no documentário.
Em Be Natural vemos também vários excertos de filmes, e fica-se com vontade de descobrir mais deste universo criativo. Depois da sua investigação, o que é que está a ser feito para recuperar a memória e obra desta realizadora?
Desde a estreia do filme no Festival de Cannes, e em muitos países mundo fora, Be Natural transformou a nota de rodapé que era Alice num ícone da cultura pop. Os historiadores estão a corrigir os seus textos, os professores, os seus programas curriculares, e o próprio filme tornou-se uma ferramenta de ensino em escolas, museus e bibliotecas. Até exposições, como a que vai acontecer no Musée d"Orsay/LACMA, destacam-na como figura-chave do cinema. Já o novo Academy of Motion Picture Arts and Sciences Museum vai celebrar o legado de Alice Guy-Blaché apresentando-a numa galeria ao lado dos irmãos Lumière e de Méliès, e batizando com ela um dos seus pilares: "As Primeiras Mulheres no Cinema". Mas há mais. A Universidade de Yale deu o nome dela a uma sala de cinema e, de resto, é mencionada diariamente nas notícias... Não a deixaremos ser esquecida novamente. E acho que ainda há filmes por aí! Há sempre mais alguma coisa por descobrir.
E acredita que documentários como o seu e o de Mark Cousins (As Mulheres Fazem Cinema) podem fazer a diferença na mentalidade da indústria do cinema? Sente que há alguma coisa a mudar?
Estamos, definitivamente, a ver mudanças a acontecer lentamente, como um efeito cascata. Leva tempo, mas quanto mais histórias como esta forem contadas, mais mudanças ocorrerão nos próximos anos.
No fim de contas, o que é que lhe deixou esta experiência, do ponto de vista do impacto pessoal?
Fazer este documentário mudou-me, aprendi muito com a Alice. Eu própria estava cega, cresci sem ver filmes de mulheres realizadoras, achava que era a norma. Agora vejo o mundo de maneira diferente, tendo a ir à procura de histórias lideradas por mulheres, e quero incluir o máximo de mulheres à frente e atrás das câmaras. Enfim, fazer este filme foi um grande sacrifício, de que ainda estou a recuperar - e que ainda não acabou. Estamos a trabalhar para que seja visto no maior número possível de países.
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