Palavra e morte num inferno africano 

O interior de uma prisão africana filmado com mistura de fantasia e realismo. <em>A Noite dos Reis</em> é uma boa surpresa do realizador da Costa do Marfim, Phillipe Lacôte.
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Entre o exotismo africano e a promessa de uma reflexão sobre os extremos da violência do Terceiro Mundo. Assim é a premissa deste filme que acabou por ser o candidato da Costa do Marfim aos Óscares deste ano, depois de se ter destacado nos Horizontes, secção paralela do Festival de Veneza.

A Noite dos Reis baseia-se em acontecimentos verídicos do submundo do crime em Abidjan, narrando as desventuras de um jovem delinquente que vai parar à prisão infernal MACA. Para sobreviver é obrigado a assumir a função de contador de histórias, embora saiba que a tradição faça com que seja sacrificado mal a noite das histórias seja concluída. Ao mesmo tempo, no interior da prisão violenta há um confronto de líderes: o rei dos prisioneiros, o doente Barba Negra, e Lass, pretendente ao trono e com uma visão mercantil da gestão do estabelecimento. À medida que o novo contador de histórias começa a narrar a sua história, que é também a de Zama King, um delinquente que se tornou psicopata, a violência vai sendo adiada por intermédio da palavra. História puxa história que puxa sempre mais uma história. A morte de Zama King é repleta de prequelas que incluem fábulas que chegam a confrontos ancestrais entre reis da Costa do Marfim, especialistas em mutações. De humano a serpente ou águia vai um passo...

É nesse jogo de imaginários africanos e intrinsecamente genuínos da cultura mística marfinense que Phillipe Lacôte, natural de Abidjan, se agarra para contar este conto negro. Fá-lo com um realismo que é sempre quase mágico, oferecendo ao espectador uma versão de alta tensão de uma Sherazade de As Mil e uma Noites africana. Uma oferta que inclui flashbacks de fantasia pelas histórias "inventadas" de anciões com super-poderes e uma sugestão de fábula encenada com decoro. Tudo isto sem tirar o pé do género do filme-de-prisão, no qual estão conferidos motivos de disputa masculina de poder e a possibilidade de uma ilustração narrativa em jeito de musical de coro.

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Lacôte conduz estas histórias de tradição oral com uma certa graça teatral e aí o equívoco com A Noite de Reis, de Shakespeare, começa a explicar-se... De pé num pequeno banco de madeira, o menino contador de histórias é acompanhado por uma coreografia do público prisioneiro e aí o filme configura o peso do plano à movimentação cénica. Os atores assumem a marcação do palco mas nunca se sente que a câmara está a filmar teatro. Em rigor, é cinema com combustível de cena, de palco...E aquela prisão, cenário possível de um Mad Max, tem o tal efeito de verdade. Lacôte em criança visitava La MACA quando a mãe cumpria pena....

Entre o turbilhão de alegorias africanas que aqui se propõe, A Noite dos Reis é um ensaio sobre o poder da palavra em tempos da barbárie. Um filme perfeito para ser visto em contexto escolar apesar de alguma violência, todo ele tingindo pelas cores da mais exuberante loucura humana. Lâcote torna-se um dos nomes do cinema africano contemporânea para seguir de perto.

dnot@dn.pt

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