Olhar para a América afro-americana com especificidade segura e sem condescendência
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'Pais e Filhas'. Amor de pai

Está já na Netflix um dos documentários com hype para os próximos Óscares, 'Pais e Filhas', de Angela Patton e Natalie Rae, um feliz exemplo de uma nova linguagem do cinema documental americano, com ênfase na descrição séria de uma comunidade afro-americana.
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Os números oficiais anunciam que o sistema de encarceramento nos EUA está a atingir níveis desumanos. As prisões, sobretudo para a comunidade negra, são um dos maiores pesadelos sociais nestes dias. Estamos a viver tempos em que as visitas são proibidas de forma presencial e em que há um negócio de chamadas e de vídeo-chamadas entre os encarcerados e as suas famílias. Este documentário que caiu no goto da crítica mostra isso sem ser esse o seu tema diretamente, sendo que não deixa de ser impressionante o acesso desta câmara ao interior de uma prisão de alta segurança, um local bem mais desumano e sombrio que muitos filmes realizados por brancos em Hollywood imaginam.

Daughters, que segundo os buzzes, pode estar na linha da frente para os Óscares na secção de documentário, é sobretudo um filme sobre paternidade e a sua dádiva, centrado, claro, no drama de quem não pode estar com os seus filhos. Não se trata de oportunismo sentimental, longe disso, mas sim de uma proposta para sermos testemunhas de algo que é raro o cinema poder mostrar: um encontro entre pais e filhas que vão poder estar juntos apenas durante seis horas. É coisa de arrepiar, entre a alegria mais inocente e a crueldade mais pragmática. De um lado, os pais, criminosos condenados com penas pesadas, do outro, crianças e adolescentes que aprenderam a amar os seus pais à distância.

As realizadoras Natalie Rae e Angela Patton foram atrás de uma exceção neste regime das video-chamadas nas prisões americanas (não é demais lembrar que os EUA são o país com o maior número de detidos no mundo), sobretudo através do trabalho de ativismo de Patton, uma mulher que luta em prole do orgulho das mulheres afro-americanas. Foi ela quem descobriu um programa de associação que ajuda a interação entre pais e filhas afro-americanas nas prisões. Uma associação que conseguiu organizar um baile só para filhas e pais numa prisão. Uma ocasião única que durante semanas preparou prisioneiros a lidar, em muitos casos pela primeira vez, com as suas filhas que não estão a criar. Para as crianças e adolescentes podia ser a única forma de conhecer fisicamente os seus papás.

Por muito que o filme possa parecer uma lança promocional do trabalho social e humanitário de Angela Patton, Pais e Filhas tem o mérito de ser sempre genuíno e brutalmente honesto, não só porque se sentem os quatro anos na sua feitura mas todo um envolvimento afetivo que só o enriquece. O documentário tem o seu clímax a meio, o baile, mas depois continua. O que acontece depois de um momento extra? Como é que aquelas raparigas crescem com uma ausência, como é que aqueles homens aceitam que têm de viver a saber que não vão criar as suas filhas? As respostas estão lá todas e são dadas por um cinema que está em cima daqueles homens e daquelas meninas. Por muito que faça impressão a muitos os cuidados estéticos da câmara, o que é do tempo do real sobressai sempre mais, da reunião com o conselheiro dos pais ao plano das gravatas e roupas dos pais empilhadas no chão montado em seguida com a sequência dos pais já a recolherem às celas com os fatos cor-de-laranja. É coisa que toca bem fundo, seja a quem é pai ou não.

No seu pior, Pais e Filhas tem algo de um especial encomendado por Oprah Winfrey para servir de consolo, no seu melhor pertence à escola de cinema documental que deu um passo à frente e capta uma ação real com tempos narrativos autónomos e dinâmicos e sem medo de se parecer com um curso intensivo de psicologia social. Na essência, é sobre famílias cortadas ao meio. No último terço, há finais felizes que a produção perseguiu, mas também há casos adiados e tristes.

Em tudo isso, ficamos presos ao olhar das filhas sem pai, meninas que são tremendamente carismáticas, animais de câmara, proeza das cineastas. Pelo meio, manda-se às urtigas a fórmula das entrevistas mais clássicas. Os protagonistas estão prontos a ser “apanhados” nos seus dramas e alegrias neste vendaval da ansiedade da separação. E as realizadoras estão lá sempre nos momentos vitais, sabem captar com ética o preciso momento do adeus derradeiro. Cinema certo na altura certa.

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