Racismo e corrupção em Nova Iorque pela lente 'noir' de Edward Norton

Realizador e protagonista de<em> Os Órfãos de Brooklyn</em>, Edward Norton dá cartas numa elegante revisitação do <em>film </em><em>noir</em>. Ele é um detetive, afligido pela síndrome de Tourette, que tenta desvendar o assassínio do seu mentor numa Nova Iorque em mudança.
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O projeto de Os Órfãos de Brooklyn foi acalentado ao longo de duas décadas e finalmente ganhou vida no grande ecrã. Edward Norton viu na personagem principal do romance homónimo de Jonathan Lethem (lançado em 1999) uma mente fascinante capaz de nos conduzir, sem destino certo, na misteriosa atmosfera de Nova Iorque. O filme, assinado e interpretado por Norton, centra-se nessa figura peculiar, Lionel Essrog, com síndrome de Tourette, que tem uma maneira muito especial de apurar a realidade à sua volta - se os tiques, físicos e verbais, derivados da doença são um empecilho nas relações comuns do dia-a-dia, a sua memória fotográfica, por outro lado, funciona prodigiosamente.

Lionel é uma alma bondosa, decente e solitária. O seu patrão, Frank Minna (um carismático Bruce Willis), tirou-o de um orfanato, juntamente com outros três jovens e treinou-os para serem alguém neste mundo: detetives privados. Um dia, uma enigmática reunião com uns clientes resulta no assassínio desse mentor de Lionel e, ao contrário dos seus colegas de agência, ele não descansa enquanto não descobrir o caso em que Minna estava envolvido e quem o matou. Assim, o filme segue de intuição em intuição, pista a pista, na montagem de um puzzle mental complexo, que vai dar às instâncias do poder, passando o seu protagonista - disfarçado de repórter - tanto pelas noites vaporosas de um clube de jazz em Harlem como por uma manifestação popular comunitária ou até uma reunião pública sobre planeamento urbano... Estas circunstâncias, de alguma maneira, estão todas ligadas por uma personalidade política, Moses Randolph (interpretado por Alec Baldwin, com nuances trumpistas aguçadas), que é claramente inspirada em Robert Moses (1888-1981), figura autoritária responsável pelo desenvolvimento urbano de Nova Iorque.

O clima político e social que Edward Norton recria em Os Órfãos de Brooklyn tem óbvios pontos de contacto com o cenário da atualidade americana. Mas isso não é um eco do livro. Pelo contrário, o primeiro gesto de liberdade que o realizador (idealista) assumiu em relação ao romance de Lethem foi recuar a ação até aos anos 1950, cruzando a história de Lionel com o referido autocrata que destruiu os bairros nova-iorquinos - habitados sobretudo pela classe trabalhadora afro-americana - em nome de interesses especulativos. Por essa razão, o filme presta-se, no seu âmago, a um olhar frontal sobre os fenómenos ainda latejantes da sociedade americana, relacionando racismo com corrupção e gentrificação.

Dito assim, talvez soe demasiado a agenda política. Mas se é verdade que tudo isto faz parte da teia inteligente de Os Órfãos de Brooklyn (na linha de Chinatown, de Roman Polanski), o que se revela de facto surpreendente nesta segunda, e ambiciosa, longa-metragem de Norton é a sua postura clássica de film noir, quase a roçar uma fantasia de estilo, que articula os moldes narrativos do género com a filigrana de época. Ao rigor e à elegância do quadro citadino - sempre num jogo de sombras, chapéus e gabardinas, ao som do jazz - junta-se uma manifesta linha emocional. E essa deriva não apenas do bom coração do protagonista, que Norton representa com tremenda sensibilidade (Óscar à vista?), mas sobretudo do "fantasma" protetor que associamos a Minna/Bruce Willis, uma presença permanente no tecido fluido e melancólico do filme, a que o tema musical composto por Thom Yorke confere uma densidade inusitada.

A paixão e o brio que está na base do projeto é percetível em cada fibra de Os Órfãos de Brooklyn, desde o aprimorado trabalho do diretor de fotografia, Dick Pope, à pulsação das personagens de um elenco notável, em que se destacam ainda Gugu Mbatha-Raw e Willem Dafoe - já para não falar do espírito literário de Raymond Chandler. E da mesma forma que o nervosismo e caos exterior de Lionel/Norton está sempre em conflito com a sua brilhante mente detectivesca, o filme procura também controlar a sua febre noir com um toque suave. Veja-se, como ilustração desta ideia, a delicadíssima cena no clube de jazz em que a mulher-do-casaco-azul, Gugu Mbatha-Raw, puxa Norton para dançar, amenizando-lhe os espasmos involuntários do corpo com a mão levemente pousada sobre a nuca dele, qual ponto nevrálgico.

*** Bom

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