António Fonseca na ACT - Escola de Atores a ensaiar com jovens que vão participar no espetáculo.
António Fonseca na ACT - Escola de Atores a ensaiar com jovens que vão participar no espetáculo. Reinaldo Rodrigues

'Os Lusíadas' em 13 horas: um “freakshow” admite quem lhe dá voz

António Fonseca fez o que chama de ‘falação’ da obra de Camões pela primeira vez em 2012. A última foi há três anos e agora volta, quiçá pela última vez, porque “fazer o integral é um freakshow”, diz.
Publicado a
Atualizado a

Tal como a partitura de uma sinfonia de Beethoven não se lê mas ouve-se, os versos d’Os Lusíadas de Luís de Camões não são para ser lidos, são para ser ouvidos. É António Fonseca quem o diz, o ator que no próximo dia 3 de maio realiza a ‘falação’ integral da obra de Camões no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, uma produção do Teatro D. Maria II, no âmbito das comemorações dos 500 anos do poeta. Ao longo de 13 horas (das 10h às 23h), com pausas para almoço e jantar, António Fonseca apresenta a epopeia de Luís de Camões ao público, verso a verso, estrofe a estrofe , canto a canto. No canto X será acompanhado por um grupo de 20 jovens estudantes de teatro. E a palavra é mesmo ‘falação’, vinca o ator.

“Não é declamar, não é recitar. Não, é falar. Um texto está escrito - um poema, um romance -, e eu tiro-o do código da escrita para o código da fala. Ora, escrever um texto é escrita, falar um texto é ‘falação’. Dizem que a palavra não existe, por acaso existe”, diz ao DN.

A primeira vez que António Fonseca fez este espetáculo integral, os dez cantos, foi em 2012, em Guimarães, na Capital Europeia da Cultura, e a palavra ‘falação’ não foi pacífica. “Foi uma preocupação ao princípio. Não me queriam deixar usá-la em Guimarães. Mas eu disse que ou é esta ou não é nenhuma. Foi um braço de ferro.”

António Fonseca
António FonsecaReinaldo Rodrigues

António Fonseca venceu a prova de força e a palavra ficou. E se a primeira ‘falação’ integral d’Os Lusíadas foi em 2012, a última realizou-se há três anos no Teatro Nacional D. Maria II e a próxima, em maio, nos Jerónimos, deverá ser a última, porque “fazer o integral é um freakshow. É o homem de duas cabeças...”, justifica o criador deste espetáculo.

O ator começou a memorizar Os Lusíadas em 2008 até saber a epopeia de cor. “De cor quer dizer isso mesmo - vai do coração para a boca. Já passou pela cabeça. Passar pela cabeça é estudar, é o trabalho de casa. A melhor forma de comunicar é do coração para a boca e não da cabeça para a boca”, defende o intérprete. Diz que demorou quatro anos e muito trabalho até “ousar” fazer a apresentação integral. “Não tinha fins de semana, não tinha férias. À noite, passava três, quatro horas antes de adormecer a decorar as estrofes. Foi isso, foi muito trabalho. Quando disse a primeira vez, fazendo uma conta por alto, tinha quatro mil horas de trabalho”.

Foram várias coincidências e a necessidade de criar o seu próprio trabalho que o levaram a pensar em fazer este espetáculo, sendo que d’Os Lusíadas tinha a “experiência do Secundário e não era gratificante”.

“As coisas são chatas ou porque não valem nada ou porque são incríveis mas estão mal feitas, mal ditas. E pensei que devíamos estar a mexer mal nisto, nesta transmissão, neste mexer nesta massa. E depois comecei a perceber que sim, que estava e está muito mal mexido”. Prova disso, aponta, é que desde essa altura que vai às escolas onde fica duas horas a dizer Os Lusíadas e a conversar com os alunos sobre a obra de Camões e a reação é sempre boa - “é porque isto lhes bate num sítio qualquer”.

Durante os espetáculos, António Fonseca não se limita a recitar o texto de Camões, há uma “provocação contínua” do público. “Desde a primeira vez que eu fiz o espetáculo que a minha preocupação é sempre de dois em dois minutos, de três em três ou de cinco em cinco, depende, eu paro e digo: o que é que isto quer dizer? Não vos faz lembrar nada? Ok, vamos continuar”.

As grandes obras, como as de Shakespeare e de outros, diz, “sobreviveram porque são obras de grande humanidade, são grandes espelhos, vão ao fundo de questões fundamentais”, e Os Lusíadas estão entre elas. “O Velho do Restelo diz é por ganância, para ficarem famosos, querem ser donos da Índia, Pérsia e Arábia, como o Trump quer ser dono da Gronelândia, do Canadá e do Panamá. Isto fala connosco hoje”.

Reinaldo Rodrigues

A ‘falação’ do canto X, o último, é partilhado com os 20 jovens. O DN assistiu a uma parte do ensaio com eles na ACT - Escola de Atores. Duas estudantes começam a ler o texto e António Fonseca interrompe para dizer que é preciso “desenhar as palavras, não se importem com o sentido, mas com o som”. “Dizer todas as sílabas” e estar “sempre ‘on’, o corpo sempre ligado. As coisas naturais são uma merda. Arte, artificial...”, sublinha o formador.

Sem pausas e sem comentários pelo meio, recitar Os Lusíadas demora cerca de sete horas, diz António Fonseca, que gostaria de gravar esta ‘falação’. Já o fez uma vez, há cerca de sete anos, em CD. Mas como em cada CD só cabiam 85 minutos, no máximo, e quanto mais CD maior o custo (que saiu do seu próprio bolso), teve de apressar o ritmo e dizer cem estrofes em 38 minutos. “Mas eu gostava de dizer cem estrofes em quarenta e dois minutos. Gostava de fazer sem esse constrangimento, a um ritmo que eu acho muito mais interessante, que é fazer coisas muito rápidas, e depois coisas muito lentas, sem preocupação. Gostava de gravar isso outra vez”. E lança o desafio: “Se houver alguém... eu faço de borla, só preciso de um estúdio e de um técnico durante uma semana”.

António Fonseca na ACT - Escola de Atores a ensaiar com jovens que vão participar no espetáculo.
"Senti afinidade com Paula Rego na aproximação ao universo da arte como campo de batalha"

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt