Quantos anos demorou a "traduzir" Os Lusíadas para português corrente? 13 anos, com uma dedicação, no mínimo, de quatro horas diárias. Além da dificuldade em conseguir uma expressão correta, fluente e atual, a minha proposta de leitura deveria ser cotejável com o original, para que Os Lusíadas possam estar acessíveis a todos os falantes do Português. Foi longo o trabalho para explicar muitas estrofes. E se, nas minhas incertezas, "encontrei agulha em palheiro" , devo-o aos historiadores Alexandra Pelúcia, João Paulo Oliveira e Costa, José Manuel Garcia, Roger Crowley e, ainda, a Elaine Sanceau, Costa Brochado, Francisco Rebelo Gonçalves (de quem fui aluno), e outros. Na realidade, este é um trabalho que resulta de contributos duma equipa muito vasta de investigadores atuais..Qual foi a sua grande motivação para este trabalho extraordinário? Foi a vergonha de saber tão pouco, pressentindo que, com muito trabalho e alguns anos (não imaginava tantos!), conseguiria o entendimento do poema e a possibilidade de o revelar a quantos quisessem lê-lo. Foi isso..Outros antes de si tentaram o mesmo? O Poema faz agora 450 anos de publicação, e cedo foi sentida a dificuldade da sua leitura. Por isso, logo em 1584 surgiu uma edição "com diversas anotações de diversos autores", reeditada em 1591, ainda "com algumas anotações de diversos Autores". Outras edições se seguiram até que em 1613 foi publicada a do P. Manuel Correia que é, de facto, a mais útil de todas as iniciais. Não parafraseia as estrofes, mas dá indicações úteis para muitas delas. A tarefa é complicada, e de grande risco para a credibilidade de quem a intentar. Por isso, só em 1915, um funcionário público, Francisco Sales de Lencastre, publicou Os Lusíadas anotados para leitura popular totalmente parafraseados. Poucos anos depois, em 1921, também um médico, o Dr. Campos Monteiro publicou uns Lusíadas anotados e parafraseados. Em 1978, o Prof. António José Saraiva, organizou uma edição muito útil, com Introdução, notas e vocabulário que, estrofe a estrofe, vai revelando o sentido de cada uma delas. Não faz a paráfrase global, mas é muito útil. Como se vê, em 450 anos, não é vasta a listagem de paráfrases do Poema: só três atrevidos arriscámos o nome numa paráfrase total. Sei, claramente sei, que terei cometido erros (alguns já os corrigi); sei que há "piscos" e "talhas" no meu trabalho, mas hão de corrigir-se e alguma luz nova fará incidir sobre esta obra maior da literatura mundial..Qual a vantagem real da paráfrase sobre a anotação? É enorme a vantagem da paráfrase. Os Lusíadas anotados nunca foram solução satisfatória. Raramente as notas coincidem com as dúvidas do leitor. A paráfrase é a única solução total para a acessibilidade ao Poema. Ela supõe todas as notas, e propõe um modo de ler a estrofe. A paráfrase é a generosidade total para com o leitor..O que representam para si Os Lusíadas? Depois de todos estes anos de estudo, Os Lusíadas são, para mim, o Poema maior da Humanidade, suplantando os poemas clássicos tanto quanto uma obra com base histórica excede, em credibilidade, qualquer outra obra de base lendária. Os Poemas clássicos, imaginando situações extremas, bélicas, naturais ou outras, pretenderam criar heróis e sugerir comportamentos que fossem modelo para a educação dos jovens. E foram determinantes na formação da cultura ocidental europeia, além de, pela excelência da sua arte, deliciaram as pessoas cultas do Ocidente. Os Lusíadas não sugerem comportamentos, mas demonstram-nos, mostrando de quanto é capaz o Homem em situações extremas. Por isso, mais do que nenhum outro, Os Lusíadas são o Poema do Homem, da sua coragem, da sua extrema capacidade de resistência a qualquer contrariedade e do seu afinco ao cumprimento do dever. Nenhum Poema revela tão credivelmente a capacidade da determinação do Homem..E qual é para si o grande herói nos Lusíadas? D. Afonso Henriques: o rei mais determinante na formação do país, e a quem o Poema dedica maior número de estrofes. É ele o nosso grande herói. Alcançada a independência, foi-se formando a Nação, estruturada, culturada e, depois, expandida - e estas fases aconteceram por determinação de reis de grande mérito a quem Os Lusíadas dão lugar eminente: D. Sancho I, D. Dinis, D. João I e Nun"Álvares Pereira, D. João II e D. Manuel I - mas também Egas Moniz, Duarte Pacheco Pereira, D. Francisco de Almeida e seu filho Lourenço, Afonso de Albuquerque, D. João de Castro e tantos, tantos outros... Mas antes de todos, está o nosso Fundador. E Luís de Camões deu-lhe merecido lugar..Camões merece lugar de destaque na literatura mundial? Sem dúvida nenhuma. Como não há universidade onde se não estudem os Poemas clássicos e a tragédia grega, por maior razão não deveria haver universidade onde se não estude o maior Poema à demonstração da grandeza do Homem. Os Lusíadas revelam a maior gesta dum Povo pequeno e pobre que, desde 1129 a 1549, foi capaz de conquistar a sua independência, conquistar o seu território, descobrir a arte da navegação em todos os oceanos e ser a nação mais influente no mundo. Nem em fábulas sonhadas!.Que tipo de cultura tinha o poeta? Vasta. Muito vasta, desde o Latim à astronomia e às artes navais. De todas a que mais me espanta, e mais trabalho me deu, foi o seu imenso conhecimento e uso dos diversos matizes semânticos das palavras latinas. Foi essa enorme capacidade que lhe possibilitou ostentar, nas 1102 oitavas, uma expressão tão natural como se o Poema não tivesse de estar condicionado pela métrica nem pela rima. São muitos os casos - e todos eles exigentes de muita atenção devido à diversidade dos seus valores semânticos. Os exemplos que imediatamente me ocorrem são os adjetivos alegre, diligente, generoso, ledo, pronto, a preposição em de triplo valor, etc... Estas palavras, e muitas outras, apresentam variação semântica na língua latina. Luís de Camões conhecia-as e a todas recorreu. Essa variação torna, por vezes, difícil descobrir qual o sentido num ou noutro verso. É este um dos problemas do parafrasear..Aprende-se a história de Portugal nos Lusíadas, pelo menos até meados do século XVI? Claro! Os Lusíadas são um Poema narrativo de base histórica, enriquecido por episódios de rara beleza e, por isso, agradáveis de ler e de fácil memorização. Ao Poema se deve que muito da história de Portugal não tenha sido esquecido pelo tempo. Logo na primeira biografia de Luís de Camões, a da edição de 1613, Pedro de Mariz tem estas palavras, referindo-se ao Poeta: a sua obra "deu perpétua vida às mais heroicas obras da nação portuguesa". Os Lusíadas revelam-nos os retratos morais, e mesmo físicos, das maiores personagens da nossa história..Os Lusíadas, como estão neste seu livro, são exatamente os que Camões escreveu? São, mas... É hoje universal o reconhecimento de que a pontuação original não é fiável. Logo, as várias edições vão pontuando, de acordo com a leitura de cada um. Nesse campo, também eu fiz alterações. Há, no entanto, dois casos que mereceram justificação: II-103 e VI- 84. Quanto a palavras, que eu me lembre, apenas num caso validei uma alteração que vem já da edição de 1597, e faz todo o sentido. Na estrofe IV-39, no verso 5, a edição de 1572 diz: "tinge o ferro o fogo ardente". As edições seguintes de 1584 e 1591 mantêm a mesma versão. Mas a ed. de 1597, sem dar qualquer justificação, corrige, e põe sangue em vez de fogo - o que faz todo o sentido, pois o fogo não tinge uma espada, mas o sangue tinge-a certamente..E há explicação para o erro? Há. Na grafia do século XVI, eram muito parecidos o s e o f. Fogo e sangue eram escritos quase assim: "foguo" e "fãgue" (o S era igual ao F sem o traço horizontal). Verificámos se havia no Poema situações que nos permitissem o desvio do texto original. E há. Na estrofe III-52, o "campo perde a cor com rios de sangue"; em IV-35, "o cavaleiro tinge a verdura com sangue". Por isso, na estrofe IV-39, pudemos optar pela proposta da edição de 1597: é o sangue, e não o fogo, que tinge a espada..Hoje faz 450 anos dessa primeira edição. E recentemente houve traduções para turco e árabe. É uma obra universal? Claro que é! A História do Povo Português, n' Os Lusíadas, teria lugar em todas as Universidades a par da Ilíada, da Odisseia, da Tragédia Grega ou da Eneida. Os Lusíadas, por serem históricos e demonstrarem a grandeza surpreendente dum Povo, excedem aquelas obras literárias tanto quanto, em credibilidade, a história excede a lenda. Portugal é referido na cultura mundial como um enigma - mas sem razão. Foi, de facto, um enigma, e Luís de Camões também dele se terá apercebido, mas logo o resolveu. O Poema não deixa espaço a qualquer enigma: Canto I-25; II-49; III -109; X-40; X- 91 a 144, etc... É, para nós, motivo de grande orgulho que Os Lusíadas sejam traduzidos para outras línguas. Outros povos poderão ver neles aquilo que fomos - e, não duvido, aquilo que podemos ser, se voltarmos a ter chefes determinados, estáveis, e de olhos rasgados para o futuro: "co"o rei se mudo o Povo"..leonidio.ferreira@dn.pt