Os fantasmas aqui tão perto
Convenhamos que o novo filme do americano Abel Ferrara, Sibéria, não será o exemplo típico de objeto para a quadra natalícia. O que, entenda-se, não o impede de ser uma das mais desconcertantes e fascinantes estreias dos últimos meses.
Em boa verdade, nenhuma quadra seria "ideal" para o seu lançamento, quanto mais não seja porque Ferrara, revelado há uns bons quarenta anos - com thrillers selvagens como The Driller Killer (1979) e Vingança Duma Mulher (1981) -, sempre foi um criador das margens. Mesmo quando se envolveu com os grandes estúdios - lembremos o admirável Dangerous Game (1993), com Madonna e Harvey Keitel, visão cáustica dos bastidores do próprio cinema, nunca estreado nas salas portuguesas -, Abel Ferrara permaneceu um obstinado independente, capaz de recriar os modelos clássicos de Hollywood de forma original e ousada, explorando as suas zonas mais obscuras e, por assim dizer, convivendo com os seus fantasmas.
De fantasmas, justamente, é necessário falar a propósito de Sibéria. Esta é, de facto, uma viagem protagonizada por uma personagem de muitos assombramentos. Chama-se Clint e tem um bar nas montanhas, uma espécie de refúgio poético (a direção fotográfica de Stefano Falivene faz maravilhas com a paisagem coberta de neve) em que tudo o que acontece define uma intimidade impossível de caracterizar através das categorias psicológicas mais tradicionais.
De tal modo que Clint pode descer à cave e dialogar com o seu "duplo" sobre tudo aquilo que falhou na sua existência para, mais tarde, se descobrir no cenário de uma gruta onde encontra o fantasma do pai (ironicamente, com o rosto ensaboado, a preparar-se para fazer a barba...). Até mesmo os cães (huskies) que vivem com ele na neve podem reaparecer numa cena nas areias de um deserto, acompanhando a sua deambulação sob um sol escaldante.
Não estamos, de facto, perante um filme que se possa definir através de um conjunto de peripécias que nos conduzam a uma coleção racional de efeitos e consequências. Quando o filme foi apresentado no Festival de Berlim (em fevereiro, derradeiro grande certame de cinema antes da pandemia), Ferrara fez uma curiosa observação sobre o título, não o considerando sequer uma identificação geográfica: "Há elementos que podem vir de qualquer parte. O próprio título não sei de onde veio... Para mim, para muitos americanos, Sibéria representa exílio, solidão, frio, um lugar exótico e mágico..."
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Sibéria é, assim, uma experiência sensorial que, para lá do seu motor dramático - o confronto de Clint com os silêncios do passado e os enigmas da sua personalidade -, devolve o cinema a um gosto experimental que está longe de ser vanguardista.
O paradoxo, desconcertante e sedutor, é esse mesmo: trata-se de procurar uma dimensão primitiva da arte de filmar que faz do ecrã não uma janela aberta para a vida visível, mas uma composição em movimento, perturbante e sensual, apostada em lidar com o invisível. Se podemos aproximar a vibração surreal de Sibéria de algum dos anteriores trabalhos de Ferrara, será, por certo, dessa insólita experiência que dá pelo nome de Os Viciosos (1995), um filme de... vampiros.
A filmografia de Ferrara está recheada de experiências que nos remetem para a história e o imaginário made in USA - citemos apenas o caso simbólico de Polícia sem Lei (1992), porventura o seu filme mais célebre, retrato de um polícia corrupto de Nova Iorque interpretado por Harvey Keitel. Ao mesmo tempo, os seus universos narrativos parecem pertencer a uma sensibilidade exilada, empenhada na procura de um lugar alternativo para viver. Confirmando ou não tal bilhete de identidade, recordemos que o nova-iorquino Ferrara deixou os EUA pouco depois do 11 de Setembro: vive em Roma e, de uma maneira ou de outra, todos os seus filmes dos últimos anos são produções de raiz italiana.
Enfim, importa não esquecer que tudo o que acontece no cinema de Ferrara envolve uma relação muito particular, de metódica cumplicidade, com os atores. Os exemplos são múltiplos: Christopher Walken compondo um alucinado líder do crime, em O Rei de Nova Iorque (1990); Juliette Binoche revisitando a herança da Bíblia, em Maria Madalena (2005); Gérard Depardieu numa personagem inspirada no escândalo Dominique Strauss-Kahn, em Bem-Vindo a Nova Iorque (2014).
E ainda, claro, Willem Dafoe, intérprete de todos os riscos, compondo o atormentado Clint de Sibéria. É a sexta vez que trabalham juntos, depois de títulos como 4:44, Último Dia na Terra (2011), uma amarga história de amor em ambiente de ficção científica, ou Pasolini (2014), centrado no dia em que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini foi assassinado. Na visão de Ferrara, como na disponibilidade de Dafoe, prevalece um estranho e envolvente realismo: para conhecermos o que somos, é forçoso lidar com o medo do que não conhecemos.