Os "bons malandros" preparam-se para voltar ao ecrã

Série baseada no livro "A Crónica dos Bons Malandros", de Mário Zambujal, deverá estrear na RTP no final do ano. Gravações começaram em agosto, com todas as medidas de segurança.
Publicado a
Atualizado a

Estamos nos anos 80, o país vive uma democracia recente e uma crise económica complicada, a Troika está em Portugal, Eriksson está no Benfica e Futre no Sporting. No Bairro Alto abre uma discoteca chamada Frágil, pouco depois é inaugurado o centro comercial das Amoreiras. Herman José põe-nos a rir com o Tal Canal e as crianças vão para a cama ao som do Vitinho.

Em 1980, Mário Zambujal publica a Crónica dos Bons Malandros e em 1984 estreia o filme realizado por Fernando Lopes - uma comédia muito lisboeta protagonizada por João Perry, Lia Gama, Nicolau Breyner e Maria do Céu Guerra, entre outros. É um sucesso. A música O Malandro, de Paulo Carvalho, ganha uma nova vida:

E eis que, em 2020, os "bons malandros" voltam a atacar - agora como uma série de oito episódios, produzida pela Ukbar Filmes com estreia marcada na RTP lá mais para o final do ano.

"A ideia inicial até foi de um dos meus filhos que tem 24 anos e que leu a Crónica dos Bons Malandros e gostou tanto - daí se vê que é uma obra transversal a várias gerações - que me perguntou: ò pai, o que é que estás à espera para fazer um filme disto?", conta o realizador Jorge Paixão da Costa. Quando o pai lhe disse que já havia um filme, o rapaz comentou que "isto também dava uma boa série de televisão". Jorge Paixão da Costa foi reler o livro e concordou.

Falou com o amigo Mário Zambujal, que gostou da ideia: "Mário, agora tens de me contar tudo aquilo que não puseste no livro", desafiou-o o realizador. E depois entrou no processo o argumentista Mário Botequilha, com quem Paixão da Costa já fez, entre outros projetos, O Soldado Milhões (2018) e O Mistério da Estrada de Sintra (2007).

As gravações deveriam ter arrancado em maio mas, entretanto, meteu-se a pandemia. Começaram no início de agosto. Por estes dias o edifício da Caixa Económica Operária, na rua Voz do Operário, em Lisboa, está ocupado pela equipa de gravações. O sol entra pelas janelas de vidros coloridos e as fotografias antigas, a preto e branco, das equipas de ginástica, futebol e hóquei, continuam penduradas nas paredes, recordando os bons tempos da Associação Recreativa O Clarinete de Prata. Mas vai-se a ver e afinal estamos num salão de baile onde Adelaide e Carlos dançam um tango apaixonado. Ou estamos no bingo, onde Silvino faz contactos por entre números gritados e velhotes que bebem martinis. "Há pipis", anuncia um cartaz escrito à mão. Também há rebuçados "bolas de neve" e vinho verde à pressão, "de Melgaço, genuíno".

"O livro é perigosamente cinematográfico", avisa o realizador. "Quando é assim nós facilmente acabamos por fazer uma espécie de relatório do livro em vez de fazermos um filme ou uma série." Teve que lutar contra isso. Ainda assim, optaram por seguir muito de perto a estrutura do livro - em que, sem perder a noção do conjunto, cada capítulo é mais dedicado a uma das personagens.

A Crónica dos Bons Malandros "é a história de uns pilha-galinhas que decidem dar um passo maior do que a perna e assaltar a Gulbenkian", explica Jorge Paixão da Costa. "É uma história intemporal, sempre houve malandros e sempre haverá. Se eu os vestisse como hoje e se em vez de irem roubar os Laliques fossem roubar o BES, seria de outra maneira mas era a mesma coisa, há malandros em todo o lado."

"Toda a gente dizia que não era possível filmar na Gulbenkian mas afinal foi", diz, contente. Claro que as joias usadas na gravação eram umas "cópias manhosas", "mas assim ao longe parecem verdadeiras", ri-se.

E ainda que muitos de nós nos recordemos do filme é importante frisar que a série não é um remake do filme, é uma adaptação do livro. "O livro daria para uma hora e meia e a série é muito maior, tem oito episódios", explica a produtora Pandora Cunha Telles. "Uma das coisas interessantes foi o trabalho do Jorge Paixão da Costa diretamente com o Mário Zambujal, para expandir o universo dos malandros, ele tinha uma caixa cheia de histórias que vieram dar mais vida a estas personagens."

O próprio Mário Zambujal apareceu um destes dias na rodagem para ver o que estavam a fazer e conversar com os atores. "Foi muito especial, acho que ele estava muito contente de ver novamente estas personagens em ação. Almoçámos com ele e contou-nos de onde vieram estas personagens, foi quase um workshop", conta o ator Marco Delgado - cabelo muito preto enrolado, um fio de ouro sobre a camisa branca - que interpreta o papel de Renato, O Pacífico, que "é o líder do grupo de marginais e o estratega do assalto à coleção. É uma personagem cheia de camadas, muito rica, é temperamental, vaidoso. É um pintas, um galã do bairro."

"É sempre um desafio fazer uma adaptação de um livro, principalmente de um livro tão icónico. Muita gente leu o livro, conhece a história e criou as suas próprias imagens. E fazer uma série que consiga fazer justiça às imaginações de toda a gente é o mais difícil. Nós contamos a história à nossa maneira e criamos as nossas próprias personagens", explica a atriz Maria João Bastos, que interpreta Marlene, a namorada de Renato. Maquilhagem carregada nos olhos, vestido azul plissado, permanente no cabelo e pastilha elástica na boca, ela é "a Marlene do Renato" - "ele é o cérebro do plano, é ele que reúne o grupo, e a Marlene dá-lhe apoio mas também um bocadinho mandona e controladora".

Marco Delgado considera que o mais difícil foi encontrar o tom sério - um registo de tragicomédia: "Não poderia ser uma comédia desbragada porque queríamos que fossem personagens verdadeiras". "Isto foi escrito nos anos 80, estava a entrar a troika em Portugal. E agora estamos no século XXI e estas personagens já refletem isso, por isso são personagens talvez ainda mais complexas porque têm trazer dois universo - o dos anos 80 e o atual", explica Pandora Cunha Telles.

No elenco encontramos ainda nomes como Adriano Carvalho (Flávio, O Doutor), Joana Pais de Brito (a prostituta Adelaide), José Fidalgo (Carlos), Luís Aleluia (o Bananas), José Carlos Garcia (Barbosa), Rui Unas (Silvino) e José Raposo.

No set de gravações o ambiente é de entusiasmo, apesar das máscaras que todos têm de usar a todo o momento - incluindo os atores que só retiram as máscaras no momento de gravar. Todas as semanas fazem testes de covid-19, a temperatura é medida várias vezes ao dia, é preciso desinfetar as mãos e os sapatos à entrada, trocar várias vezes de máscara. Não é muito agradável mas é o que tem de ser feito, dizem todos os atores. "Temos que nos adaptar."

"Esta é a primeira produção que estamos a fazer pós-covid e criámos um protocolo de segurança específico, que inclui testes e mais uma série de outros mecanismos de higiene no local da rodagem, nos transportes, no guarda-roupa, uma quantidade de regras que obviamente nos fazem andar mais devagar mas que nos permitem continuar", explica a produtora.

Era importante retomar a atividade. "Sinto sempre que a imobilidade serve para um momento de reflexão, não para um processo contínuo criativo", afirma Pandora Cunha Telles. "Nós adiámos esta série, adiámos a estreia de alguns filmes, mas em algum momento é preciso avançar. E estamos felizes por estar a fazê-lo. Todos os envolvidos estão contentes com esta decisão. Nós queríamos trabalhar e é preciso haver ficção nacional em horário nobre na televisão." A rodagem deverá terminar em setembro, até lá os malandros vão andar por Lisboa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt