"É triste pensar que só há espaço para um determinado tipo de cinema"
Pandora da Cunha Telles é produtora de cinema, responsável pela Ukbar Filmes. O seu maior desafio é juntar talentos e equipas para fazer um filme que agrade ao público: "Ainda estou a tentar."
Aos 40 anos, Pandora já ganhou há muito o direito a não ser só "a filha de António da Cunha Telles" (produtor e realizador de cinema). Mas também não esconde a influência que o pai, atualmente com 83 anos, teve na sua vida. A produtora de Florbela, Al Berto, Soldado Milhões e A Mãe É Que Sabe foi a escolhida por Terry Gilliam para produzir em Portugal O Homem Que Matou Dom Quixote - que tantas dores de cabeça e processos judiciais lhe tem dado. Gosta de Kieslowski, de Woody Allen e de todos os filmes que produz como quem gosta dos filhos - com todas as suas imperfeições.
Lembra-se do primeiro filme que viu no cinema?
Acho que foi um musical que fui ver à Gulbenkian com a minha mãe, Sete Noivas para Sete Irmãos [realizado por Stanley Donen, 1954],quando era muito pequenina. É difícil dizer porque o cinema sempre esteve presente na minha vida. A minha mãe é uma cinéfila, o meu pai é realizador, o meu irmão é um cinéfilo ao quadrado. Quando o cinema está sempre no nosso quotidiano é mais difícil identificar o momento primeiro. Lembro-me de muitos filmes quando estava a crescer. Ia muito à Cinemateca, que ficava na rua abaixo da minha casa. A minha mãe punha a programação da Cinemateca no frigorífico com umas bolas às voltas dos filmes que devíamos ver, era uma coisa muito colorida e divertida. Nos verões quentes de julho, quando ela ficava a pintar, eu e meu irmão André íamos sozinhos.
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E acompanhava o trabalho do seu pai?
Nem por isso. Tenho algumas memórias de estar no carro e ele ter daqueles telefones muito grandes, que foram dos primeiros telemóveis a aparecer, e aquilo estava sempre a tocar. Mas não acompanhei tão de perto o trabalho dele porque os meus pais estavam separados e eu via-o menos.
Na verdade, quando foi para a universidade, optou por Ciência Política e Relações Internacionais. Porquê?
Sempre tive um lado muito cívico e achava que uma das coisas mais importantes era tentar melhorar de alguma forma o mundo em que vivemos. Em conversações jantarescas lá em casa, a minha mãe dizia que eu devia ir para Línguas e Literaturas porque gostava de ler e de escrever, o meu pai entendia que eu devia ir para Direito. Eu queria estudar alguma coisa que fosse desafiante e tinha uma enorme curiosidade pelo mundo. Fui para Ciência Política e, como as aulas eram à tarde, de manhã tirei grande parte do curso de Antropologia. Eram cadeiras giríssimas. Apetecia-me descobrir coisas sobre os caçadores de cabeças ou como é que viviam as mulheres nas comunidades magrebinas.
Quando olhava para a frente imaginava-se a fazer o quê?
Enfiada num sítio qualquer exótico a falar com as pessoas. Mas depois compreendi que quer a Ciência Política quer as Relações Internacionais tinham muitas regras, para fazer uma carreira académia teria de passar muito tempo em bibliotecas e para fazer uma carreira numa organização internacional teria de passar muito tempo com formalismos. E eu já tinha estudado muito, tinha sido sempre a melhor aluna, agora queria trabalhar, fazer coisas. Foi a minha mãe que me disse: um dos sítios onde te sentes mais feliz é dentro de uma sala de cinema, se calhar devias experimentar trabalhar com o teu pai. E eu tive um almoço com o meu pai, levei o currículo e tentei vender-me.
Antes disso nunca lhe tinha ocorrido trabalhar em cinema?
Quando falava com o meu pai sobre cinema, os filmes tinham sempre problemas de catering, com os hotéis, com os atores, e eu achava que a produção dos filmes era uma coisa muito sem graça. Quando estava nos últimos dois anos da faculdade, comecei a ir muitas vezes almoçar com o meu pai, que nessa altura estava a fazer os telefilmes da SIC. Nesses vários almoços, com ele e outras pessoas que trabalhavam com ele, falavam muito dos projetos, mais do que falar de cinema de uma forma abstrata, eram coisas concretas, problemas do guião e soluções, falavam da vida deles, das revoluções que tinham vivido, da forma como o cinema os tinha moldado. Acho que foi através dessas conversas, sobretudo de um argumentista que era o Carlos Saboga, que comecei a achar que o cinema era uma coisa muito gira. Mostraram-me um lado fascinante disto de fazer filmes. Comecei a ver que era bom tentar pôr em contacto pessoas muito diferentes com opiniões e experiências de vida diferentes e tentar criar histórias que têm uma ilusão de se assemelhar à realidade mas conseguem fazer-nos viver melhor a nossa realidade.
Foi trabalhar para a produtora do seu pai a fazer o quê?
Fui tratar de coisas que estavam penduradas na empresa. Telefones, computadores, era uma espécie de doméstica administrativa. Eu queria ir para a rodagem, mas o meu pai não queria que eu fosse. Dizia que produzir um filme não é a logística, isso faz parte da implementação do filme, produzir um filme tem que ver com conceber como é que um filme pode ser feito, o realizador, o argumentista, as equipas.
Qual foi o seu primeiro projeto como produtora?
Quando estava a trabalhar com o meu pai e a fazer essas coisas que nada têm que ver com produzir, a realizadora Margarida Leitão disse-me que tinha uma ideia para uma curta-metragem que se chamava Ferida e pediu-me para a ajudar numa candidatura ao ICA [Instituto do Cinema e Audiovisioal]. Eu fiz a candidatura e nós ganhámos. Foi o meu primeiro projeto e ganhámos. Tive uma sorte danada logo ao princípio.
O seu pai alguma vez lhe disse para não se meter no cinema?
Milhares de vezes. E noutras vezes diz-me: não vás por aí que isso não funciona. Passa a vida a dizer-me isso. É o que eu ouço mais. Ainda hoje ele me diz «não trabalhes tanto, não serve de nada, o cinema no fim não paga o investimento todo que nós fazemos». Mas eu, como ele, sou uma pessoa obsessiva, que se investe demasiado em algo. Na verdade devíamos ser todos mais ponderados. Mas nós, as pessoas que fazem cinema, somos todos muito emotivos, muito apaixonados, por isso juntamos além do necessário uma grande quota-parte de nós no processo.

Pandora da Cunha Telles no seu escritório na Ukbar Filmes, em Lisboa.
© Pedro Rocha/Global Imagens
Só consegue fazer um filme se gostar dele?
Não. Já fiz muitos filmes pelos quais não estava apaixonada. Mas nós apaixonamo-nos não só pelos filmes mas também pelos realizadores. Há filmes que nos podem dizer menos, mas se respeitamos e gostamos das pessoas com quem trabalhamos, às vezes aceitamos apostas. Porque trabalhamos como uma família.
O produtor é aquele que faz que o filme aconteça, mas também é quem muitas vezes tem de trazer o realizador de volta à terra. É um equilíbrio complicado?
O orçamento dos filmes é finito. Claro que os filmes ficariam melhores com mais dias de rodagem, com mais dinheiro para o décor, para a montagem. A dificuldade é saber como fazer, com os recursos que nós temos, o melhor filme possível e compreender que determinados desejos - do realizador, do diretor de arte, etc. - que parecem absolutamente fundamentais às vezes não o são. Tendo nós uma visão um pouco mais afastada e abrangente do filme, do orçamento e de todas as fases que ainda faltam, conseguimos ponderar quais os melhores investimentos e soluções. Passamos muito tempo a fazer controlo de danos, a tentar aproximar cada vez mais o filme, primeiro na rodagem, daquilo que queremos fazer e, depois, na pós-produção, daquilo que gostaríamos de ter feito. E o papel do produtor é de facilitador mas também de organizador, de psicólogo, de amante, de mulher, de marido, de pai, de mãe, para tentar que todas as peças possam encaixar juntamente com o realizador. E, obviamente, tentar arranjar dinheiro para que esta festa - que é uma festa - se faça.
Esse papel mais interventivo do produtor nem sempre é bem aceite pelo realizador, pois não?
Não sei. Eu sempre fiz assim. Acho que as pessoas profundamente capazes e geniais querem ter os melhores filmes e não lhes interessa de onde é que vêm as ideias, apropriam-se daquilo que seja o melhor para a sua obra. Para mim o desafio é poder trabalhar em conjunto com autores e criadores - são palavras um bocadinho ingratas porque existem criadores que não são autores. Um diretor de arte, um diretor de fotografia, um montador, os atores, por exemplo, são criadores. Num filme há muitas pessoas a contribuir criativamente para ele se faça. Essa gestão artística, que é feita pelo realizador e pelo produtor, é das coisas mais desafiantes no cinema.
Houve um momento em que percebeu que queria trabalhar por conta própria?
Trabalhei sete anos com o meu pai. Ele deu-me espaço e condições para eu aprender como é que se faz um filme. Houve um momento em que eu queria investir muito mais financeiramente em tudo aquilo que não é palpável - em desenvolvimento, repérages, argumentos, em tudo o que é etéreo mas é essencial para os filmes. Por isso, herdei um escritório de 25 metros quadrados com uma casa de banho debaixo das escadas, para começar a criar a Ukbar. Era um espaço pintado de verde-alface, parecia um aquário. Comecei sozinha mas depois conheci um produtor argentino, o Pablo Iraola, que se associou a mim.
Que filmes sonhava fazer?
Eu queria que o comum dos mortais, alguém que não fosse um intelectual, que fosse um operário, uma cabeleireira, alguém sem instrução ou um estudante universitário, se sentisse desafiado a ir ver um filme português. Quando eu comecei havia uma catalogação muito forte do cinema português como algo um pouco aborrecido - algo que hoje já se perdeu um bocadinho. Isso preocupava-me. Eu tinha crescido com filmes portugueses absolutamente extraordinários - como O Costa d'África, de Vasco Santana, As Ilhas Encantadas, do Carlos Vilardebó, e Os Emissários de Khalôm, que era um filme estranhíssimo do António de Macedo. Eram filmes muito diferentes e que, cada um à sua maneira, eu achava muito pouco aborrecidos. Mas todos os meus amigos que não vinham de uma área artística falavam com alguma reticência do cinema português. O meu desafio era contar histórias que pudessem entusiasmar o público português.
Conseguiu?
Ainda estou a tentar. Estamos sempre a tentar fazer o melhor filme e que faça as pessoas sentir algo. Porque quando as pessoas não têm só uma relação meramente intelectual com um filme, mas quando choram, quando se riem, quando têm uma emoção, a primeira coisa que fazem é compartilhar isso com os outros. E assim é que os filmes se transformam em sucessos. Contar uma história é das coisas mais difíceis, e em cinema ainda mais. Mas, depois, conseguir comunicar esse filme e ter as salas pelo país que permitam que as pessoas tenham tempo para ver o filme, esse é que é o triângulo das Bermudas.
Fazer um filme é muito caro. Como é que se arranja dinheiro para esta atividade?
Estou sempre a tentar descobrir maneiras de arranjar dinheiro, porque fazer filmes é uma atividade dispendiosa. As pessoas que fazem filmes em países com menos de 20 a 30 milhões de habitantes sabem que o espaço cultural não permite a recuperação do investimento sobre as bilheteiras de cinema. Esses países precisam de encontrar um sistema que permita que se continue a fazer filmes, porque senão deixaríamos de fazer filmes e só importávamos. Só que foi compreendido a seguir à Segunda Guerra Mundial que era fundamental manter uma cinematografia nacional ativa, por isso foram criados institutos do cinema para, de alguma forma, proteger e regulamentar as cinematografias nacionais, mas também para incentivar, financiar e permitir que elas pudessem ter mais força. E, portanto, nós temos em Portugal o Instituto do Cinema e Audiovisual, que tem essa função. Fazer um filme é como cozinhar, não dá para fazer só com carne, é preciso juntar umas cebolas e umas cenouras e juntar um bocadinho de azeite. Assim como é preciso adicionar vários elementos a nível de financiamento - do ICA, das câmaras, de uma televisão, de um distribuir ou de uma plataforma de distribuição, em sala, VOD, DVD. É difícil fazer filmes só com um financiador. Pode-se juntar algum financiador internacional, coprodutores, depende do projeto, se é um filme para o mercado internacional e para os festivais ou se vai agradar mais ao público interno.
Em Portugal andamos sempre a discutir os subsídios ao cinema. A Pandora tem tido uma voz muito ativa neste debate.
A minha posição é muito serena: penso que há espaço em Portugal para diferentes cinematografias. Tanto gostei do Balas e Bolinhos 2 [de Luís Ismel] como do AqueleQuerido Mês de Agosto [de Miguel Gomes]. Têm públicos e objetivos diferentes, são feitos por autores e criadores diferentes, mas existe espaço para ambos. Sei que esta ideia parece um bocadinho pueril, mas acho que as cinematografias se tornam mais fortes quando são plurais. Claro que quando o bolo é pequeno é sempre difícil dividi-lo. Se o bolo fosse maior talvez fosse mais fácil. Mas, na realidade, os melhores sistemas de apoio são aqueles que conseguem compreender que têm de existir dois tipos de apoios: um seletivo (com base nas qualidades criativas dos autores e produtores do projeto) e um automático (que apoie realizadores e produtores que tenham feito filmes com muito espectadores). Seriam ajudas complementares.
Essa é uma ideia muito pouco consensual.
Isso não me preocupa. É triste pensar que só há espaço para um determinado tipo de cinema. As regras teriam de ser um pouco mais claras para definir que tipo de projetos deveriam ser apoiados - mais do que a composição dos júris, a definição dos critérios que tornam elegível uma obra para financiamento público é que deveria ser mais rigorosa.
Há quem argumente que é injusto apoiar um projeto que depois vai ter bons resultados comerciais e que, portanto, não precisaria desse apoio.
Na realidade, uma produtora que tenha um filme que faça muitos espectadores não consegue, apesar disso, retirar dinheiro para reinvestir noutra obra. Portanto, dizer isso é uma falácia.
Envolve-se muito em todos os projetos?
Mais do que gostaria. Envolvo-me imenso. Gosto muito do que faço. É a minha enorme paixão.
E depois fica muito stressada a ver os números dos espectadores?
Depende. Um filme como Comboio de Sal e Açúcar, do Licínio Azevedo, não achei que ia fazer muitos espectadores em Portugal, por isso não fico surpreendida com os números. Mas fiquei surpreendida com os números no Brasil e nos Estados Unidos e por ser o primeiro filme moçambicano elegível para um Óscar. Já com a comédia A Mãe É Que Sabe, do Nuno Rocha, talvez eu esperasse que os números em Portugal fossem mais animadores, mas depois senti-me recompensada porque o filme funcionou bem na RTP num domingo, em horário nobre. Nós queremos sempre que os filmes sejam bem recebidos. Por vezes os filmes têm fragilidades que não conseguimos ultrapassar, mas que conseguimos identificar quando da estreia. Nenhum filme é perfeito, nós gostamos deles independentemente de serem perfeitos ou não.
Posso perguntar-lhe por O Homem Que Matou Dom Quixote, de Terry Gilliam? O filme é de quem afinal?
Há demasiadas coisas a ser ditas, muitas delas com falta de veracidade. Com o tempo a verdade há de aparecer. O filme estreou-se em França e em Espanha e vai estrear-se numa dezena de países daqui até ao final do ano. Em Portugal também vai estrear-se. O filme encerrou Cannes e foi extremamente bem recebido, teve uma ovação de 15 minutos em pé, o que foi extraordinário. É uma sensação incrível ter estado lá, ao lado do Terry Gilliam e dos nossos coprodutores. Foi um filme emocionante de se fazer, espero que as pessoas o acolham com a mesma emoção com que o Terry e nós o fizemos.
Mas a nível legal, em que pé estão neste momento?
Esse é um tema demasiado longo para ser abordado aqui. O processo legal é muito complicado. Para compreender a situação, as pessoas teriam de ler as várias ações legais e os resultados. Como isso não é possível, pronunciar-me sobre isso é simplesmente aumentar a confusão junto do público. Não me interessa aumentar o circo à volta do filme, que é um filme extraordinário. Até agora nada tem impedido a distribuição do filme em todos os festivais e territórios, e penso que isso vai continuar a acontecer. E o fogo-de-artifício a determinada altura vai terminar...
Nunca teve vontade realizar?
Não. Tenho vontade de escrever em geral, às vezes para cinema. Há alguns realizadores que me têm puxado para essa aventura. Mas do que eu gosto mais é pôr a máquina a funcionar e juntar os vários elementos que permitam que um filme seja viável.
Vai ao cinema?
Vou muito, com os meus amigos, com a minha mãe, sozinha.
Quais são os filmes da sua vida?
Tantos. Fahrenheit 451, de Truffaut, La Double Vie de Véronique, de Kiewslowksi, It's a Wonderful Life, de Capra, Gigi, de Vincente Minnelli...Tenho um gosto muito eclético, gosto de filmes muito diferentes. É mais fácil falar dos realizadores que já morreram porque já não nos podem desapontar. Mas há realizadores que eu vou ver sempre que estreiam um filme novo, como o Almodóvar, o Woody Allen ou o Clint Eastwood.