ORLAN: “Tento fazer da minha vida uma obra de arte. Temos a eternidade para ser discretos”
Rita Chantre / Global Imagens

ORLAN: “Tento fazer da minha vida uma obra de arte. Temos a eternidade para ser discretos”

Em Lisboa a convite da Univ. Lusófona para o Multiplex, ORLAN falou ao DN da vinda a Portugal, em 1976, da luta contra os estereótipos de beleza e de feminismo. Nascida em 1947, a artista francesa, que trabalha com pintura, escultura, fotografia, vídeo, instalação ou performance garante que a luta continua essencial.
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Em 1977 foi convidada para um festival de artes performativas nas Caldas da Rainha. No seu site há uma foto da ORLAN com um vestido no qual está estampado o seu corpo nu a passear por um jardim e várias pessoas a olhar para si . Portugal vivia na altura os primeiros anos em democracia depois do 25 de Abril, qual foi a reação dos portugueses à sua arte?
Eu penso que as pessoas não estavam prontas para aquele festival e aquelas performances. Houve reações muito, muito fortes.

Boas ou más?
Más, claro.

Houve repercussão na imprensa?
Houve muitas repercussões na imprensa. Mas o importante não era que se falasse de mim, mas sim explicar ao público o que eu faço e o que outros fazem. Porque, por exemplo, andar a passear pela cidade com um vestido em tela fotográfica, que me tapava dos pés à cabeça, foi muito antes de Jean-Paul Gaultier fazer vestidos com representações de corpos. Muito, muito antes. E o que era interessante é que não podiam deter-me… porque tinha o passaporte na mala e estava vestida dos pés à cabeça. Quando os polícias vieram tentar prender-me, não podiam fazê-lo. 

ORLAN nas Caldas da Rainha em 1977 envergando um vestido estampado com o seu corpo nu: “As pessoas não estavam prontas.”

Foi também em Portugal que realizou pela primeira vez a sua performance mítica Le Baiser de L’Artiste [explicada mais adiante]. Imaginava na altura que iria ser um ponto de viragem na sua carreira?
Não, eu faço o meu trabalho e depois os media é que fazem os escândalos. Mas depois disso fui imediatamente despedida da escola onde dava aulas. E o que é mais incrível é que foi por telegrama, o que era totalmente ilegal. E dizia: “A tua atitude destes últimos tempos é totalmente impossível com o teu papel de formadora. E, por isso, todas as tuas aulas estão suspensas e vamos fazer as tuas contas.”

Aconteceu-lhe muitas vezes ao longo da sua carreira sofrer retaliações devido ao seu trabalho?
Sempre que trabalhamos com o corpo, pode haver escândalos. Eu tento sempre testar os limites e as regras. Detesto regras e tento desregula-las. É um pouco como a minha obra Tentative de Sortir du Quadre. É uma obra fotográfica e, também, eu toda a vida tentei sair do enquadramento. 

Numa das suas primeiras obras usou os lençóis do seu enxoval. Qual foi a reação da sua família à sua escolha de carreira?
Ficaram boquiabertos, siderados, não concordavam nada. Mas quando se faz o trabalho que eu faço não se pede a bênção nem à família, nem ao pai, nem à mãe, nem à Igreja, nem a ninguém. Ni dieu, ni maître.

Pintura, escultura, fotografia, vídeo, instalação, performance, a sua carreira é muito diversa. Mas a ORLAN também faz do corpo o seu instrumento, a sua obra. Nos Anos 90 fez mesmo uma série de cirurgias estéticas…
Primeiro, gostava de me apresentar. Sou ORLAN, entre outros e na medida do possível. E o meu nome escreve-se com letras maiúsculas porque não quero que me ponham na linha. Sou uma artista que não está sujeita a uma prática artística ou a um meio ou a uma tecnologia, seja antiga ou atual. Tenho a pretensão de querer dizer coisas importantes para a minha época e, para tal, estudo os fenómenos sociais. Depois de fazer a elaboração, a teoria, fico com a coluna vertebral e o manifesto da minha obra. Só nessa altura, quando a coluna vertebral está sólida, é que começo a pensar que meio é mais adequado. Ao longo da minha vida, utilizei muita, muita coisa. Fiz pintura, escultura em mármore de Carrara, escultura com impressora 3D, escultura em resina. Há muita fotografia e vídeo na minha obra. E faço também muitas coisas com as novas tecnologias. Trabalhei com bio-arte, com biotecnologias. Trabalhei com realidade aumentada, com a Inteligência Artificial, com a robótica. Mas também cultivei as minhas células, cultivei a minha flora vaginal, a minha flora intestinal e a minha flora bocal. Muitas vezes os jornalistas dizem que vou a todas. Não vou a todas. Não quero ir a todas. Quero apenas trabalhar com os materiais e as formas que me permitam dizer da melhor maneira o que quero dizer à sociedade. E, como fenómeno social, questionei, por exemplo, o assédio no futebol. Neste momento estou a trabalhar com IA, que é também um fenómeno social. E antes trabalhei com as operações plásticas, que são um fenómeno social, sobretudo na época. Estávamos no início, pelo menos na Europa, mas já estava bem avançado no Brasil ou nos EUA. Então quis posicionar-me. Eu não sou contra as cirurgia estética, sou contra o que se faz com ela: a normalização, os estereótipos, os modelos. Por isso fiz operações usando a técnica das plásticas, mas com uma finalidade totalmente diferente. Fiz operações não para trazer beleza, mas para trazer monstruosidade, fealdade, indesejabilidade. Coloquei implantes, como os que se metem geralmente nas maçãs do rosto, de cada lado da minha testa, o que resultou em duas bossas. De início funcionou muito bem. Disseram-se todas as parvoíces possíveis sobre a minha obra, disseram que era louca, que não era arte. Mas ao fim de algum tempo começaram a dizer-me “ORLAN, és bonita”. E eu digo, “não, olha melhor, tenho duas bossas”. E respondem-me: “Fica-te bem”. E eu saboreio a vitória, porque era o que eu queria dizer - que o que consideramos belo são apenas os ditames da ideologia dominante num determinado momento geográfico e histórico. 

Essa luta contra os estereótipos de beleza, que marca toda a sua carreira, hoje apesar dos direitos que as mulheres foram adquirindo, é mais importante do que nunca?
Mais do que nunca. Porque achámos que a progressão ia ser linear, mas a verdade é que houve alguns progressos, e ainda bem, mas hoje em dia tudo se está a fechar sobre si próprio. Quando vemos que nos EUA o aborto é proibido e também o que se passa noutros países… Sabe, eu sou muito radical: gostaria de erradicar todas as religiões. Porque todas as religiões são criadas por homens, para os homens, para manter o seu poder e, por isso, a misoginia e o patriarcado.

Eu sei que é radical. Também defende, por exemplo que as pessoas deviam parar de ter filhos…
Eu acho que é mesmo um problema, porque as mulheres tiveram de povoar a Terra, elas tinham um papel muito claro. Mas hoje a Terra está sobrepovoada e ter mais filhos, quando os recursos da Terra estão esgotados, é demais, é um eco-crime. É preciso ter consciência disso. Portanto, as que acharem indispensável ter filhos, porque muitas vezes lhes meteram na cabeça que era essencial para ser uma verdadeira mulher, ou as que querem ver como é que funciona, bom, um filho, pode ser. Até dois podemos dizer que é um produto de substituição, porque os adultos vão morrer e as crianças os vão substituir. Mas a partir de três, é completamente anacrónico.

Rita Chantre / Global Imagens

Falámos há pouco de feminismo. Como é que vê a sua evolução desde as lutas dos Anos 60 e 70, contra o aborto, pela contraceção, etc., até ao #MeToo  hoje em dia?
O feminismo é como a psicanálise ou outras áreas, tem imensas capelinhas diferentes. Eu tenho muita dificuldade com algumas feministas americanas, que já não querem apertar a mão a um homem, que já não querem ler livros escritos por homens. Acho que são atitudes sectárias, que não me interessam. O #MeToo  teve coisas muito positivas, mas não entrou nos costumes, não foi integrado, porque o que continuo a ver, seja na televisão, nos filmes ou nos videojogos, é a mulher a ser apresentada ou como mãe ou como puta. É muito difícil lutar contra isso. E quando fiz Le Baiser de L’Artiste, foi o que procurei fazer. Primeiro fiz uma escultura na qual, de um lado estava a minha efígie disfarçada de Virgem Maria, e as pessoas podiam acender-me velas, por cinco francos. E, pelo mesmo preço, do outro lado, podiam receber um beijo, um beijo a sério, um french kiss.

Imagino que na época - depois da passagem pelas Caldas da Rainha, em 1977 a obra integrou a Feira Internacional de Arte Contemporânea, no Grand Palais de Paris - esta obra tenha sido revolucionária.
Sim, podemos dizer revolucionária. Pelo menos despediram-me logo da escola onde dava aulas, por isso teve consequências. 

Sente que mesmo hoje em dia, as mulheres são muitas vezes o pior inimigo das mulheres?
Pode acontecer, até com frequência. Porque foi ensinado às mulheres a viverem na rivalidade. Por isso, a nossa melhor ferramenta é a sororidade. É com a sororidade que se pode sair do patriarcado. Mas não se pratica muito, o que lamento. Por exemplo, na minha carreira, os homens tiveram atitudes muito más, mas por vezes foram as mulheres que tentaram impedir-me de avançar. A situação é difícil. E digo-o na minha autobiografia ORLAN, Striptease, tudo sobre a minha vida, tudo sobre a minha arte, editada pela Gallimard e que acaba de ser traduzida para português para a minha retrospetiva em São Paulo. Nesse livro tenho todo um capítulo sobre a sororidade. Mas a primeira coisa que eu digo é que ser mulher é uma calamidade, tanto social como biológica.

A imagem da ORLAN é muito forte, não se cansa de nunca passar despercebida?
Não há nenhuma razão para passarmos despercebidos. Primeiro tento fazer da minha vida uma obra de arte, o que recomendo a toda a gente. Temos a eternidade para ser discretos. Mas ensinámos às mulheres a serem discretas. É por isso que a minha assinatura faz parte da minha obra, que é como a escrita inclusiva - e eu escrevi o meu livro em escrita inclusiva, ou seja, o masculino não ganha sempre. Parece-me indispensável enquanto mulher, e digo-o alto e bom som, por exemplo através de uma série de obras que fiz inspiradas nos retratos que Picasso fez de Dora Maar, em que ela estava sempre a chorar. Tentei fazer uma série chamada “As mulheres que choram estão zangadas” para dizer às mulheres: parem de ser objetos, sejam sujeitos, parem de sofrer, parem de chorar, parem de estar atrás de um grande homem, falem alto, gritem se for preciso, mas tornem-se um sujeito que se emancipa, que é capaz de se fazer ouvir. Encontro a toda a hora mulheres que falam com uma vozinha pequenina. É desastroso. Temos de ter a ambição de ter, pelo menos, um capital cultural, de nos instruirmos, de pensar, de trabalhar, de sermos independentes. É a minha mensagem para todas as mulheres que não se autorizam a existir verdadeiramente.

Alguma vez lamentou algumas das suas decisões?
Não, mas neste momento estou inconsolável. Porque hoje em dia tudo se  fecha cada vez mais sobre si próprio. As mulheres, como os homens. E queria dizer que gosto dos homens, gosto de seres humanos bonitos, ou seja, os homens que não gritam, que não batem, que não assediam, que não violam, que não não. Desses, eu gosto. Mas não percebo como é que não se unem para apoiar as mulheres. Todos estes homens que não são como os abomináveis restantes deviam tomar a palavra para defender as mulheres. E defender a atitude dos homens gentis. Para mim não há nada pior do que a violência. E quando vemos que esta está a subir em todo o lado, em todo o mundo, quando vemos o regresso da extrema-direita, quando vemos que há homens e mulheres que não votam. Mas somos nós, homens e mulheres, que temos o poder de impedir o totalitarismo de voltar, de impedir os ditadores de voltarem. Neste momento, em todo o mundo, eles estão a posicionar-se, ajudados pelos evangélicos. É preciso denunciar esta situação. E neste momento sou totalmente a favor da Inteligência Artificial, porque nós, humanos, não conseguimos enfrentar a situação sozinhos.

Muitos artistas temem a IA, acham que esta pode ficar com o seu lugar. A ORLAN não sente isso?
Precisamos absolutamente da IA, nós estamos obsoletos, não temos memória suficiente. Eu não tenho medo das novas tecnologias, tenho medo dos seres humanos e do que vão fazer com elas. Por isso é tudo uma questão de educação. O que é dramático com a IA, hoje, é que pessoas mal-intencionadas a usam para fazer e dizer coisas abomináveis a pessoas que não as disseram. Há fake news  que é preciso detetar em todo o lado. A IA é usada para fazer votar em Trump, é uma ferramenta de propaganda, Putin usa-a muito. É preciso ter consciência disso e não acreditar em tudo o que se vê ou se ouve.

A própria França corre o risco de virar para a extrema-direita…
Sim, quase de certeza.

Muitos franceses parecem resignados com a provável vitória de Marine le Pen nas próximas presidenciais, que não há nada a fazer…
Eu tento fazer alguma coisa todos os dias. Considero que o corpo é político, que o privado é político, e que tudo o que fazemos, tudo o que dizemos, tudo o que vemos… somos como papel mata-borrão, absorvemos tudo. Por isso é preciso desconfiar, do que lemos, das pessoas com quem falamos. Temos de desconfiar de nós e dos outros. E não esqueçamos o que dizia Nietzsche: “Temos a arte para não morrermos da verdade.”

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