Não deverá existir outro sítio no mundo que reúna, num espaço de cerca de 25 hectares, obras de oito prémios Pritzker de Arquitetura: Frank Gehry (1989), Álvaro Siza (1992), Tadao Ando (1995), Renzo Piano (1998), Herzog & de Meuron (2001), Zaha Hadid (2004), Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa (2010) e Balkrishna Doshi (2018). Estes projetaram edifícios que foram construídos no campus da Vitra em Weil am Rhein, na Alemanha - muito perto da fronteira com a Suíça e França -, no que pode ser considerado um verdadeiro museu de Arquitetura a céu aberto, apenas não com plantas e maquetes, mas com obras efetivamente construídas. A Vitra é uma empresa suíça que produz e distribui para o mundo inteiro algumas das cadeiras mais icónicas da história do design, como as desenhadas por Charles & Ray Eames e Verner Panton. A maioria destes edifícios de arquitetos premiados são funcionais servindo as necessidades de produção da empresa, mas o último a ser inaugurado, no final da semana passada, do arquiteto indiano Balkrishna Doshi, que morreu em 2023, tem o único objetivo de proporcionar um espaço contemplativo. Não só aos trabalhadores da Vitra, como a todos os visitantes, porque, como sublinha Rolf Fehlbaum, de 84 anos, a segunda geração desta empresa familiar fundada por Willi e Erika Fehlbaum em 1950, em Basileia, na Suíça, o campus foi-se abrindo tornando-se um espaço público que pode ser visitado, recebendo 400 mil visitantes por ano. Até é possível fazer uma visita guiada pela arquitetura do local, como fez o DN, em vésperas da inauguração do Doshi Retreat. .Inspirada na espiritualidade indiana, esta estrutura em aço reciclado com um caminho serpenteante em forma de cobras entrelaçadas conduz, através de um pequeno túnel, a um espaço coberto, reservado, com um gongo e bancos em pedra circundados por um espelho de água. O gongo é um dos elementos da instalação sonora que acompanha o percurso e que, em diferentes momentos, estimula cada um dos sete chacras - ou centros energéticos - do corpo, acabando no chacra da coroa, já no interior da câmara do gongo. O projeto acabou por ser executado por Khushnu Panthaki Hoof e Sönke Hoof, a neta de Doshi e o marido, também eles arquitetos e colaboradores dele. Khushnu explica que o brief dado pelo empresário suíço para este projeto resumiu-se à criação de uma emoção, uma experiência sensorial, e que toda a pesquisa do avô decorreu em torno disso.Doshi avançou com palavras, como “perder-se”, “intemporal”, “história”, "viagem” e outras, iniciando-se um processo descrito como “diálogo meditativo” para encontrar um “instrumento que nos fizesse esquecer de nós para encontrarmos algo de novo”. Decidiu-se que seria “um sítio onde pudéssemos chegar”. Daí o caminho que, como explica Sönke Hoof, “vai caindo devagarinho abaixo do nível do solo” sem que uma pessoa se aperceba disso, até à câmara do gongo com a sua cobertura feita à mão em latão martelado por artífices indianos. .A obra foi pedida por Rolf Fehlbaum a Doshi depois de uma visita, com a mulher, ao Templo do Sol de Modhera, na Índia. Foi o último projeto do arquiteto indiano que trabalhou com Le Corbusier no início da carreira, e o seu único edifício fora da Índia, como sublinhou o empresário. Nasceu da amizade que surgiu entre os dois quando ambos integraram o júri do Prémio Pritzker de Arquitetura. “O Doshi era o mais velho, o grande homem, e eu sentia muita admiração por ele. E ele também meio que simpatizou comigo. Tivemos um entendimento muito bom. Não é que eu pudesse ensinar algo ao Doshi, mas ele podia ensinar-me muito. Ele era uma espécie de... a palavra guru é um pouco exagerada, mas ele era algo assim para mim, e eu ficava muito feliz em segui-lo em alguns desses pensamentos”, diz Rolf Feldbaum. O empresário nota que um espaço de contemplação naquele campus pareceu-lhe “oportuno” em 2020, numa altura em que o local deixou de ser meramente uma zona empresarial. E que agora mais sentido faz ainda. “Isso foi em 2020. Desde então, o mundo mudou - confrontos, polarização, guerra, autoritarismo e tudo isso tornaram-se cada vez mais predominantes. Nesse contexto, sentimos que um lugar que representa os valores de Doshi parece ainda mais apropriado.”Rolf Fehlbaum sublinhou que “Doshi construiu pontes entre o Oriente e o Ocidente, entre a ciência e a espiritualidade, a tradição e a modernidade - e o seu mundo era de humildade, generosidade, humor e reconciliação. Esses pareciam ser valores muito, muito necessários hoje. Estamos felizes por ter a sua presença no campus”. .O edifício de Doshi fica junto ao pavilhão de conferências de Tadao Ando, completado em 1993 que, explica Fehlbaum, era para ter sido um pavilhão do “silêncio”. Foi este o pedido inicial feito ao arquiteto japonês há 30 anos, quando o líder da Vitra o conheceu em Osaka e ficou seduzido pela obra Igreja de Luz, na pequena cidade de Ibaraki, ainda antes de ter ganhado o Pritzker. Ando aceitou fazer esse pavilhão, mas depois o empresário mudou de ideias. “Nós não tínhamos, naquela época, nenhuma sala de conferências, apenas uma fábrica. Então pensei: talvez devêssemos ter não um pavilhão do silêncio, mas um lugar para o diálogo”. Para Ando, foi o primeiro projeto construído na Europa. .O campus da Vitra começou a desenvolver-se em algo mais do que um parque industrial quando o arquiteto norte-americano Frank Gehry aceitou projetar uma das unidades fabris e o Vitra Design Museum, que acolhe exposições temporárias. O contacto com Gehry aconteceu por causa das suas cadeiras em cartão. A Vitra lançou, em 1986, uma edição especial do modelo Little Beaver. Gehry também foi determinante para Rolf Fehlbaum conseguir entrar em contacto com o português Álvaro Siza. “Escrevi ao Siza várias vezes, mas nunca recebi uma resposta. E então pedi ao Gehry para falar com o Siza, e recebi a resposta. Desde então damo-nos muito bem”. .Para o empresário, “ele é um grande, grande mestre. No meio desta arquitetura ‘nervosa’ atual, ele tem-se mantido muito calmo. É uma obra duradoura, porque há coisas que parecem muito excitantes, e mais tarde olha-se para trás e consegue-se dizer que é deste ou daquele período. Algumas pessoas pensam que a fábrica do Siza é o edifício mais antigo do campus”. Mas não é, pois foi completado em 1994, e o elemento externo que chama mais à atenção é o que parece uma ponte que o liga a outro edifício e que na realidade é uma estrutura que desce e serve de cobertura contra a chuva. “E é muito interessante ver o que um bom edifício faz. Agora, uma parte da fábrica não é mais usada para produção e tornou-se uma escola de Arquitetura. O Siza projetou a entrada, as escadas e as novas portas, mas dá para ver como um bom edifício funciona para diferentes propósitos”, sublinha Rolf Fehlbaum. .A cobertura do Siza ficou elevada para não tirar a vista a outro edifício, de Zaha Hadid, completado em 1993. Foi o primeiro projeto construído da arquiteta de origem iraquiana, que na altura já tinha 43 anos e ganharia o Pritzker 11 anos depois. “Ela era uma arquiteta talentosa que simplesmente nunca tinha construído. Foi um pouco uma experiência na época, porque as pessoas achavam que ela era uma arquiteta de papel”, diz o empresário. O contacto dela com a Vitra surgiu mais uma vez por causa do mobiliário, e acabou por se tornar uma piada interna. “Ela acabou por não fazer uma cadeira, mas fez uma coisa mais fácil, um edifício”, diz Rolf Fehlbaum, revelando a sua paixão pelas cadeiras, o seu negócio, de que é um grande colecionador. Originalmente, o edifício foi feito para albergar uma equipa de bombeiros interna, criada após um incêndio que devastou a unidade industrial em 1981. Atualmente, é usado para a realização de eventos. .A junção destes grandes nomes da arquitetura no Vitra Campus surgiu pelas relações de amizade que o empresário foi criando com os arquitetos e a sua especial capacidade para identificar talento. Uns já tinham recebido o galardão máximo da profissão, mas outros não. Os edifícios foram surgindo à medida das necessidades do projeto empresarial. “Não é uma exposição de arquitetura. Não é uma feira. Não é um lugar onde cada um mostra a sua coisa. Todos, de certa forma, refletem sobre o trabalho dos outros, e tem de funcionar em conjunto. Por exemplo, o edifício dos suíços Herzog & de Meuron, a VitraHaus, completado em 2010, estava inicialmente demasiado próximo do do Gehry. Era avassalador. E então decidimos juntos aumentar a distância”. Também é de uma cor mais escura para contrastar com o branco da obra do arquiteto norte-americano. A dupla Herzog & de Meuron desenhou igualmente outra estrutura do campus, o Vitra Schaudepot, completado em 2016, que alberga e expõe a coleção particular de mobiliário de Rolf Fehlbaum, com cerca de sete mil peças..O Vitra Campus acolhe ainda projetos de arquitetura experimental, como é caso da cabana autossustentável designada de Diogene, de Renzo Piano. Ou de uma outra habitação, Khudi Bari, da arquiteta do Bangladesh Marina Tabassum. Foi concebida para ser resistente às cheias. É uma estrutura de baixo custo que pode ser montada, desmontada, transportada e montada novamente num outro local pelos próprios habitantes. .A arquiteta japonesa Tsuyoshi Tane, baseada em Paris, é um dos nomes debaixo de olho. Tem no campus uma "casa de jardim", completada em 2023, construída com materiais locais e sustentáveis. Tem uma sala, lavatório e casa de banho e um terraço no telhado com vista para o jardim Oudolf, de Piet Oudolf, designer de jardins que utiliza plantas perenes e selvagens para criar espaços verdes mais sustentáveis. A Vitra também tem salvo construções em risco de desaparecimento. Foi assim com a casa Umbrella, de Kazuo Shinohara (1925-2006), considerado um dos arquitetos mais importantes do Japão da segunda metade do século XX. A casa, construída em Tóquio em 1961, ia ser demolida para ser construída uma autoestrada. A Vitra foi desafiada a ficar com a habitação. Comprou-a, desmontou-a e levou-a para o campus onde foi montada de novo e restaurada. .Questionado sobre a arquitetura que mais chama a sua atenção nesta altura, Rolf Fehlbaum fala no trabalho de Marina Tabassum e Tsuyoshi Tane. "Estou interessado nestas arquitetas, mas só se pensa no próximo edifício quando o temos de fazer. Depois é que vamos pensar no arquiteto. Não é que exista uma lista".A jornalista viajou a Weil am Rhein a convite da Vitra .António Choupina: “As mulheres de Aalto constroem em pé de igualdade com ele. É um merecido reconhecimento”