Evitemos os lugares-comuns mediáticos. Desde a sua passagem, em maio do ano passado, em Cannes, muitas descrições do filme Oh, Canada (a partir de hoje nas salas portuguesas) desembocam numa ironia pueril que tende a varrer qualquer informação concisa sobre o próprio filme. O tom é este: “... mas no elenco está Jacob Elordi!” Elordi não tem culpa e é, sem qualquer hesitação, um talentoso ator. O certo é que a sua participação na série Euphoria (HBO Max) e também, até certo ponto, a interpretação da personagem de Elvis Presley em Priscilla (2023), de Sofia Coppola, lhe trouxeram o rótulo equívoco de “jovem adulto da moda”, ao mesmo tempo abrindo-lhe sugestivas perspectivas de carreira — entre os vários títulos em que está agora envolvido encontramos o novo Frankenstein, com assinatura de Guillermo del Toro. Dito de isto, talvez valha a pena escolher outra via para lidarmos com as fascinantes singularidades de Oh, Canada. A começar pelo facto de estarmos perante o trabalho de Paul Schrader (n. 1946), um dos grandes argumentistas/realizadores do último meio século do cinema dos EUA. Schrader reencontra aqui o ator Richard Gere que, há mais de quatro décadas, com ele rodou o admirável American Gigolo (1980), filme decisivo na carreira de ambos. Além do mais, Oh, Canada tem como base um romance de Russell Banks (Foregone), autor emblemático para Schrader de quem, aliás, já tinha adaptado Affliction (1997), entre nós lançado como Confrontação. A escolha do título do hino nacional do Canadá para dar nome ao próprio filme não é, obviamente, acidental nem simbolicamente desprezível. Acontece que a personagem de Gere, Leonard Fife (que Elordi interpreta nas cenas de juventude), foi um dos cerca de 60 mil jovens americanos que desertaram para o Canadá, de modo a evitarem a mobilização para a guerra do Vietname — acabou por se tornar realizador de documentários, consagrado por alguns meios esquerdistas canadianos como símbolo de resistência política. Começamos por conhecer Fife, muito debilitado, atingido por um cancro, disposto a dar uma entrevista final a Malcolm (Michael Imperioli), seu ex-aluno, contando com a companhia e o apoio de Ema (Uma Thurman), a terceira mulher com que se casou, depois de ter também frequentado as suas aulas. Em diversas entrevistas, tanto Schrader como Gere tiveram o cuidado de resistir à “politização” simplista de Oh, Canada, sublinhando o essencial. A saber: a história política de Fife tem muito pouco de heróico (com várias mentiras por ele forjadas, incluindo uma suposta viagem a Cuba para celebrar a revolução de Fidel Castro...), sendo, afinal, o retrato íntimo e doloroso, por fim trágico, de alguém que viveu uma vida comandada por uma “imagem de marca” que, mesmo quando o protegeu com o verniz do heroísmo, falseou as suas relações com os outros. A vida material Schrader é um retratista dessas personagens que, voluntariamente ou não, protagonizam uma “missão” que vai minando as regras com que tentam sustentar a sua verdade interior. Lembremos os exemplos modelares de alguns dos filmes em que, como argumentista, trabalhou para Martin Scorese: Taxi Driver (1976), O Touro Enraivecido (1980), A Última Tentação de Cristo (1988). Ou ainda, para nos ficarmos pelas suas realizações mais recentes, as personagens moralmente feridas de No Coração da Escuridão (2017) e The Card Counter: O Jogador (2021). Herdeiro de uma tradição a que, naturalmente, a história da literatura anglo-saxónica não é alheia (Malcolm Lowry e Flannery O’Connor são referências que gosta de citar), Schrader é um retratista de seres cuja ação desafia a estabilidade da sua própria humanidade — convém não esquecer que na sua filmografia encontramos também um fabuloso Mishima (1985). Oh, Canada é mais um momento excepcional nessa trajetória feita do confronto das mitologias individuais com a crueza da vida material. .‘Dia Zero’: Robert De Niro a presidente.'Longe da Estrada'. Entre forças destrutivas e forças criadoras.'Flow - À Deriva'. Desenhos animados que chegam da Letónia