O compositor Nuno Côrte-Real chama-lhe oratória sensacionista. E, na verdade, que melhor designação para um poema tão habitado por cheiros, texturas e sons como Ode Marítima, de Álvaro de Campos: “Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu/Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,/Que tão venenosamente resume/Para as almas complexas como a minha/O chamamento confuso das águas,/A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar (…)”? Na próxima sexta-feira, 6 de dezembro, no grande auditório do Centro Cultural de Belém, não muito longe desse cais “que é uma saudade de pedra”, subirá ao palco a cantata Ode Marítima, em que Nuno começou a trabalhar ainda antes da pandemia, respondendo, assim, a uma solicitação da Égide - Associação Portuguesa das Artes..O concerto de tributo a um dos autores mais importantes da literatura portuguesa junta a Orquestra Filarmonia das Beiras, o Coro do Festival de Verão e o Coro Ecce, dirigidos pelo maestro Paulo Vassalo Lourenço. Ambientada num cais de Lisboa, a obra explora a imaginação do eu-narrador através de estados emocionais contrastantes, desde a ternura ao caos. Com uma seleção precisa do texto original, a música conduz a narração, destacando-se, além do narrador Vítor D’Andrade, a guitarra portuguesa interpretada por Miguel Amaral, o violoncelo de Filipe Quaresma e a voz de barítono de André Henriques..Como nos conta o compositor, a história desta obra remonta a 2019, quando a associação Égide lhe encomendou “uma grande obra coral”, mas com uma grande margem para as suas próprias escolhas. Com uma paixão antiga pela obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa, Nuno decidiu-se por trabalhar a Ode Marítima, que o fascina, como diz, desde “muito jovem, quando estava a estudar composição, talvez porque lhe encontre muita música”. Além das razões musicais, Nuno considera que este longo poema de Álvaro de Campos “é uma epopeia literária, tão importante como Os Lusíadas. Embora seja uma epopeia mais interior do que exterior, uma vez que o foco está todo no grande contraste emocional que ali é descrito”..Escolhida a peça, houve que fazer escolhas. “Foi complexo ver quem canta o quê e quem diz o quê”, admite Nuno Côrte-Real. Houve também que selecionar os excertos a apresentar, uma vez que, como salienta, “o texto na íntegra levaria umas três horas a ser dito e o espetáculo tem pouco mais de uma hora”. Tempo que será, no entanto, suficiente para reunir em palco cerca de 200 pessoas, entre coros e músicos. “Será um enorme desafio”, admite o compositor, que só espera “estar à altura de um texto tão importante para a Literatura portuguesa, e mesmo mundial.”.Ana Proença, presidente da Égide, considera que “esta será uma ocasião única para “juntar muitos artistas amadores, como eu própria e a Sara Castro, também da direção da Égide, que cantam há muitos anos em coros participativos, sabendo a maravilha que é participar nestes grandes projetos. Acredito que vai ser uma noite extraordinária.”.De referir que a Égide nasceu há quase três anos, “com o objetivo de patrocinar projetos artísticos”, explica a presidente, que foi durante muito tempo mecenas de vários trabalhos a título pessoal. “Mas sentia-me um pouco sozinha e isolada nesse papel e decidi convidar alguns amigos a criar uma associação. Encomendamos obras a artistas portugueses e pomos tudo isto em marcha, tendo o cuidado de chamar pessoas que nunca tenham tido oportunidades profissionais, mas que são muitas vezes amadores muito empenhados, com obras muito bonitas.”.Até agora, como conta Sara Castro, uma dessas amigas que Ana Proença convidou a juntar-se a ela, na associação, “a primazia tem sido dada à música e à dança, mas ainda estamos numa fase inicial”. O passo seguinte será a mudança, já no princípio do ano, para o Convento de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, com o apoio da Santa Casa da Misericórdia, o que permitirá ter uma zona expositiva para artes plásticas, o que não acontecia até agora..Outra mudança a considerar será uma maior abrangência dos apoios. “Nos primeiros três anos”, diz Ana Proença, “têm sido encomendas nossas a artistas, mas em breve será possível às pessoas apresentarem candidaturas, através de uma inscrição no nosso site. Nessa altura, vamos ter também uma comissão independente que fará a avaliação desses projetos”. Até à data, a principal patrocinadora tem sido a própria presidente da associação, mas já foram captados apoios externos de entidades como o Turismo de Portugal, por exemplo..Entre os vários trabalhos apresentados, de referir, a 1 de novembro passado, o espectáculo de Daniel Bernardes, António Quintino e Joel Silva, com o Coro Ricercare, também no CCB. City of Glass, assim se intitulou o concerto, baseia-se na primeira parte da obra Trilogia de Nova Iorque, de Paul Auster.