Obras da japonesa Yayoi Kusama em exposição em Serralves
Quanta escuridão cabe no big bang de cores e formas que há na obra da artista plástica Yayoi Kusama? Segundo uma das curadoras da exposição que ontem abriu ao público, no Museu de Serralves (Yayoi Kusama, 1945 - Hoje), muita. Muita e persistente. Mika Yoshitake conta aos jornalistas como esta mulher, por ter nascido em 1929, no Japão imperial, foi atingida em plena adolescência pela tragédia da 2.ª Guerra Mundial e, depois, pelo aniquilamento total do seu país com as bombas atómicas lançadas em Hiroxima e Nagasaqui.
Como tantas jovens da época, passou o conflito a trabalhar nas fábricas que confecionavam paraquedas e uniformes para as tropas. A essa realidade já sombria juntar-se-ia uma família muito disfuncional: “Ela cresceu num Japão autoritário mesmo antes da Guerra, com a mãe a ser muito severa com ela. O pai era muito mulherengo e ausente e isso também teve um efeito devastador na formação da sua personalidade. Muito cedo, começou a ter alucinações, que, segundo conta, assumiram a forma de padrões que se moviam em torno dela.”
Como se passa deste ambiente, desastroso, a um primeiro olhar, para o facto de Kusama ser hoje uma artista aplaudida em boa parte do mundo, iconográfica, para quem gosta de recorrer a chavões? A mesma que, no ano passado, colaborou com a Louis Vuitton, numa coleção cápsula cheia de abóboras, flores e, naturalmente, muitas bolas, e concebeu um mural de grandes dimensões para o Grand Central Madison Terminal, em Nova Iorque? Segundo Mika Yoshitake, foi a “arte que permitiu a Kusama processar o seu fascínio pela morte e persistir na luta com a depressão. O reconhecimento direto desses sentimentos sombrios traz consigo uma mensagem poderosa, expressando através da arte um desejo de viver.”
JOSÉ COELHO | LUSA
160 trabalhos expostos
O que Yayoi Kusama: 1945 - Hoje nos dá a ver é, pois, a história da vida e obra da artista, destacando o seu desejo de conexão profunda com a existência e o cosmos. Com cerca de 160 trabalhos expostos, incluindo pinturas, desenhos, esculturas, instalações e materiais de arquivo, esta mostra explora a carreira de Kusama desde os seus primeiros desenhos, feitos na adolescência, no Japão em guerra, às suas monumentais obras imersivas mais recentes, com destaque para uma sala de espelhos que promete tornar-se um dos lugares mais instagramáveis do Porto, nesta primavera/verão.
Organizada por temas, a retrospetiva conduz os visitantes através da produção criativa de toda uma carreira, dividida por grandes secções: Autorretrato; Infinito; Acumulação; Conectividade Radical; o Biocósmico, Morte e Força de Vida.
Preparada ao longo de quatro anos pelo atelier M+, de Hong Kong, com curadoria de Doryun Chong e a já citada Mika Yoshitake, esta exposição esteve patente no Museu Guggenheim, de Bilbau, e é, no entender dos curadores, um bom contributo para a História da Arte Contemporânea, na medida em que mostra como, ao longo de mais de sete décadas, a artista abordou e interpretou, sempre de forma pessoalíssima, vários movimentos artísticos como a abstração, performance, minimalismo ou a arte imersiva.
Do mesmo modo, também expressa como esta mulher, aparentemente tão fechada na sua “bolha”, se mantém ainda hoje, aos 95 anos, atenta aos desafios do mundo e às questões políticas e filosóficas da atualidade.
Apesar dos traumas juvenis e transtornos psiquiátricos diagnosticados mais tarde, Kusama foi sempre uma mulher determinada em expressar-se. Aos 27 anos, já decidida a fazer carreira no mundo das artes, rumou aos Estados Unidos. Aí, procurou fazer-se notar entre os artistas da vanguarda nova-iorquina, mas o caminho foi duro, como é contado no documentário de 2018, Kusama: Infinity, de Heather Lenz.
Fascinada pela obra da pintora norte-americana, Georgia O’Keeffe, a jovem japonesa escrevera, ainda no Japão, a pedir-lhe conselhos: “Estou apenas no primeiro passo de uma longa e difícil vida para me tornar uma pintora. Poderá mostrar-me o caminho?”. Georgia respondeu-lhe com gentileza, mas advertindo-a de que “neste país [EUA], uma artista tem dificuldades de sobreviver”. No entanto, encorajava-a a fazer a viagem e a mostrar o seu trabalho a pessoas ligadas ao meio.
Nessa época, Kusama falava muito pouco de inglês e era proibido levar dinheiro do Japão para o estrangeiro. Determinada a vencer tais embaraços, costurou notas de dólar na roupa que levava vestida e partiu para Nova Iorque. Mas Georgia O’Keeffe sabia bem do que falava. Embora tenha merecido elogios a nomes tão importantes Donald Judd e Frank Stella, em breve, a jovem japonesa perceberia que tinha dificuldade em expor os seus trabalhos e, quando o conseguia, via as suas ideias copiadas por outros artistas, norte-americanos, brancos e do sexo masculino, por vezes com grande reconhecimento da crítica.
Durante anos, a artista insistiria que, em Papel de Parede com Vacas, Andy Warhol lhe roubara a ideia de criar imagens repetidas numa obra, como ela fizera na instalação Mil Barcos.
JOSÉ COELHO | LUSA
A sala espelhada
Mas o maior choque estava ainda por acontecer. Em 1965, Kusama criou o primeiro ambiente de sala espelhada do mundo, na Galeria Castellane, em Nova Iorque. Poucos meses depois, o artista de vanguarda Lucas Samaras expôs a sua própria instalação espelhada na bem mais cotada Galeria Pace, conseguindo uma repercussão crítica bastante maior que a da sua colega. Atormentada, Kusama tentou suicidar-se. Não era a primeira vez, nem seria a última.
Pela mesma época, conta-nos ainda a curadora Mika Yoshitake, a artista encara também a possibilidade de se tornar uma romancista.”
Escrevia muito “sobre o lado obscuro da sociedade, sobre pessoas que viviam nas margens, todo o tipo de pessoas que eram, de algum modo, discriminadas. Eram, no fundo, os seus amigos.”
Este sonho terminaria por volta de 1974, após as mortes do pai e do noivo, e o regresso da artista ao Japão. No seu país natal, acabaria por encontrar um instituto psiquiátrico vocacionado para a terapêutica artística e é aí que reside desde 1977.
A reavaliação do trabalho artístico de Kusama dar-se-ia já nos Anos 1980, com a organização de uma retrospetiva no Centro de Arte Contemporânea Internacional de Nova Iorque, em 1989. Quatro anos depois, o historiador de arte japonês Akira Tatehata conseguiu convencer o seu Governo de que deveria ser ela a primeira artista individual a representar o Japão na Bienal de Veneza.
Embora a deslocação de Kusama a Itália exigisse o acompanhamento constante de um psicoterapeuta, dado o receio de ela sofrer uma crise nervosa, a sua exposição tornar-se-ia um sucesso extraordinário. Aos 64 anos, Yahoy Kusama encontrava finalmente o reconhecimento tão ansiado. E não mais parou.
D.R.