Um filme que é orquestrado segundo a lógica de um mix sobre a vasta obra de um lendário criador de imagens.
Um filme que é orquestrado segundo a lógica de um mix sobre a vasta obra de um lendário criador de imagens.

O tempo e o modo de "Jonas Mekas - Fragmentos do Paraíso"

'Jonas Mekas - Fragmentos do Paraíso', de KD Davison, estreou-se recentemente nos TVCine e é um retrato em forma de homenagem ao mítico cineasta que impulsionou o cinema experimental nova-iorquino. O filme romantiza toda uma época de pioneirismo e faz-nos olhar melhor para a obra deste lituano e de uma comunidade.
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Na mesma altura em que a Disney+ tem um encantador documentário chamado Jim Henson - O Homem das Ideias, de Ron Howard, surge outro documentário sobre um cineasta que mudou a maneira de se pensar e ver o cinema: Jonas Mekas - Fragments of Paradise. É sabido que entre o criador dos Marretas e O Cristal Encantado e o cinema underground inventado por Mekas não há nada em comum, mas os dois documentos (são mais documentos do que documentários, por assim dizer...) têm afinidades inesperadas: ambos retratam criadores geniais e homens de família decentes, mas têm também um divórcio como cicatriz, ou a tese de que o amor e o contágio pelo cinema são incompatíveis com o casamento para a vida.

Produzido pelos filhos de Mekas, estes fragmentos da vida do poeta, cineasta e divulgador da câmara de filmar (primeiro a de película, depois a de vídeo) vão a todas. A começar pela maneira como ele e o irmão chegam aos EUA, neste caso a Nova Iorque, em 1949, e cedo se deixam fascinar pelo sonho do cinema. Depois há também toda essa experiência de emigração de um camponês de uma província da Lituânia, alguém que nem falava inglês, mas que literalmente se transformou num nova-iorquino. Há ainda o Jonas do começo da carreira, um homem que jamais quis ser famoso e que aos poucos se tornou numa figura central da contra-cultura avant-garde da cidade, privando com vultos como Yoko Ono, John Lennon, Andy Warhol ou Allen Ginsberg.

Esse alinhamento biográfico da sua vida incorpora sobretudo excertos dos seus diários filmados e dos seus filmes experimentais. Prova-se que Jonas Mekas e a sua câmara eram um pouco um só corpo, extensões um do outro ou, como o cineasta e amigo Jim Jarmuch dizia; “a sua câmara era uma máquina para nos fazer ver cinema de outra forma”. Isto também encadeado com entrevistas fluentemente metidas de gente como Martin Scorsese, John Waters ou Lee Ranaldo, músico dos Sonic Youth.

Habilmente, o filme sabe ainda convocar a família, neste caso os filhos e a sua Molly, o grande amor da sua vida, uma cinéfila devota que lhe deu família e um projeto em comum. Mais tarde, toca-se na dolorosa separação após 30 anos de conjugalidade onde ela se sentia um “apêndice”. Nestes depoimentos, percebe-se que todos suportaram a câmara do pai e do marido como uma inevitabilidade - para Mekas o cinema era a vida, filmar era uma pulsão para além do gesto do “home cinema”. Este documentário prova com ganas que era nas pequenas coisas do quotidiano que o lituano encontrava a poesia do acaso, a transcendência que não se explica. Era essa a arte de um artista que soube perceber que o cinema poderia ascender a algo mais, mesmo quando a dada altura duvida do sentido do seu trabalho encaixotado e sente-se amargurado na mais profunda tristeza...

Evocar Mekas é também enaltecer o seu trabalho como arquivista e colecionador, sem esquecer o seu papel como crítico na Village Voice (não se omite que escrevia bem sobre os filmes do seu milieu) e na revista que fundou, a Film Culture, reação à Sight and Sound, de Inglaterra, e aos Cahiers du Cinema, de França. Percebemos que a sua função de dirigente dos Anthology Film Archives o consumia e punha em risco a sua situação financeira e que tinha um especial prazer em ajudar outros cineastas através da gestão da Film-Makers Cooperative, a maneira que descobriu para distribuir cinema de arte.

KD Davison, o realizador, não quer ir muito além do documentário hagiográfico certinho, mesmo quando é deveras funcional na exposição do legado do cineasta e emocional na partilha do amor pelo retratado. Há como que um dispositivo televisivo que o impede de ir mais longe - os entrevistados estão sempre confortavelmente sentadinhos, coisa que não joga com a soltura e a anarquia das imagens de Mekas, nota-se isso sobretudo num momento chave do filme, a visita de Mekas, décadas depois, à casa da mãe na Lituânia. Aí parece que há timidez a esgravatar um passado onde o cineasta quis ser poeta e nunca um soldado. Sobra, então, um aspeto didático que para quem é aficionado da obra pode julgar demasiado óbvio. Ainda assim, o legado de Mekas tem aqui um bom guia introdutório, aqui e ali com pequenos-grandes achados e uma conclusão interessante: sente-se que este homem tímido terá sido salvo por uma câmara.

Algo coxa também está a a resolução da outra versão do artista, a de escritor de poesia. Uns voz-offs narrativos e está a andar. Parece que houve falta de golpe de rins para acrescentar com talento essa fatia da sua biografia.

Em 2024 um filme que retoma as obsessões e deslumbramentos de um artista como Mekas é de uma paradoxal ironia, em especial quando nas redes sociais se celebra a cultura das selfies e da exposição do íntimo. Este homem não quis inventar o “cinema-selfie” mas foi um artista que nos ensinou a ver a vida privada como princípio de compreensão do mundo. Jonas Mekas - Fragmentos do Paraíso é sobretudo uma celebração da sua utopia. Celebração bem melancólica.

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