O templo mais antigo da Humanidade é muito mais do que isso e ganhou um irmão ainda maior
São quilómetros e quilómetros entre colinas áridas onde rebanhos de ovelhas pastam uma erva seca e escassa, até Karahantepe surgir à nossa frente. À distância, pouco distingue aquele monte dos que o separam da cidade de Sanliurfa, mas a meio da subida surge aquele que pode vir a ser um ponto de viragem na História da Humanidade. Construções circulares, algumas com pilares em forma de T e numa delas uma cabeça de homem esculpida no calcário, com 11 falos à sua frente. São templos, mas também edifícios domésticos do tempo do Neolítico. E se Göbeklitepe, a poucos quilómetros daqui, foi no momento da sua descoberta apresentado como o templo mais antigo da humanidade - mesmo que hoje se saiba que com os seus 12 mil anos é certamente mais antigo que as pirâmides ou que Stonehenge mas será certamente muito mais do que um simples templo -, Karahantepe ainda nos vai dizer "muito mais sobre a origem da nossa sociedade no Neolítico", quando os caçadores-recoletores começaram a domesticar os animais, a desenvolver a agricultura a caminho de se sedentarizarem.
Quem o diz é o arqueólogo Nemci Karul, que acompanha a visita ao local das escavações. "Karahantepe foi descoberta em 1997 mas só começámos a trabalhar aqui há três anos. Nos últimos dois meses descobrimos novos edifícios, por isso chegou o momento de abrir o local das escavações ao público", explica Karul, responsável pelas escavações tanto aqui como em Göbeklitepe. E os trabalhos já estão avançados. É verdade que os acesso ainda têm de ser trabalhados, mas já existem algumas instalações de apoio ao visitante. E é aí, num palco montado com a colina em fundo, que o ministro da Cultura e Turismo turco, Mehmet Nuri Ersoy, explica aos jornalistas a importância de Karahantepe e do projeto Tas Tepeler - que significa literalmente "Montes de Pedra".
Considerando o local como "um dos achados mais importantes da humanidade", o ministro - que chegou rodeado de muita segurança e de uma enorme comitiva - explica que o objetivo é tornar Karahantepe local de paragem obrigatória nesta rede do Neolítico. Para isso querem ter o centro de interpretação a funcionar já em 2022. Afinal, "graças à sua localização geográfica e condições, a Turquia é o local onde a civilização criou raízes e se espalhou pelo mundo. A riqueza das civilizações preservada no território da Turquia representa um vasto corpo de conhecimentos e experiência que vai trazer alguma luz sobre o percurso da humanidade. O passado é o guia para o futuro e nós temos a Anatólia, o mais sábio desses guias. Temos a responsabilidade de tirar vantagem desse conhecimento e partilhá-lo para benefício da humanidade".
Com o Sanliurfa Neolithic Age Research Project, as autoridades turcas pretendem investir 127 milhões de libras e esperam atrair mais turistas para esta região da Anatólia, especialmente para a cidade de dois milhões de habitantes que reza a lenda ter sido a terra onde o rei Nimrod mandou catapultar Abraão para uma pira funerária, mas Deus transformou o fogo em água e as brasas em peixes. O lago de peixes sagrados ainda hoje pode ser visitado, bem ao lado de da mesquita que substituiu a igreja bizantina que marca o local onde o profeta e "pai" das três religiões monoteístas caiu. Hoje essa zona, abaixo do castelo da cidade, é um dos locais mais populares junto da população local que aí se reúne, aproveitando o fresco das muitas árvores para um passeio em família ou para beber um chá.
Muito mais vasto do que o seu "irmão" Göbeklitepe, Karahantepe ainda tem muito por explorar - a equipa de arqueólogos ainda só começou a trabalhar em 1% dos vestígios que sabem estar debaixo do solo, graças a pesquisas dos radares geomagnéticos. Mas afinal, porque é que estes homens do Neolítico, nesta mítica região da Mesopotâmia, enterravam os seus edifícios? "Os edifícios eram tão importantes para as pessoas naquele tempo como um ser humano por isso elas os enterravam como se fossem pessoas. Os edifícios eram sagrados e quando terminavam a sua função, eram sepultados como um humano", explica Nemci Karul. Numa área em que muitas vezes as perguntas são mais do que as respostas, sobretudo em escavações tão recentes, o arqueólogo e professor no Departamento de Pré-História da Universidade de Istambul admite: "Não sabemos quanto tempo os edifícios viviam, mas quando deixavam de ter função, eram enterrados."
Naquele que pode ser o primeiro povoamento da humanidade, encontramos uma rede de habitações em torno de um local de culto. No centro da área escavada fica uma grande sala circular.
O mesmo acontecia em Göbeklitepe. Aquele que foi apelidado de "ponto zero da humanidade" é reconhecido pela UNESCO em 2018. Situado a poucos quilómetros de Sanliurfa, o principal local das escavações surge coberto por um enorme toldo branco que protege os arqueólogos do sol impiedoso. As escavações começaram há pouco mais de duas décadas com o arqueólogo alemão Klaus Schmidt (falecido em 2014), que descreveu Göbeklitepe como "o primeiro templo do mundo". Passados alguns anos e à medida que as descobertas iam trazendo mais informações sobre a civilização que ali se instalou, percebeu-se que pode ser muito mais do que isso.
Quando olhamos para o local, vemos seis círculos compostos por pilares de calcário, alguns deles em forma de T. O seu número varia de círculo para círculo e em muitos deles vêm-se decorações, animais selvagens na maioria - javalis, leopardos, raposas, cobras, garças, bois, etc -, mas também figuras antropomórficas estilizadas traçadas sobre os pilares de maior dimensão, que pesam cerca de nove toneladas. Com uma dimensão equivalente a 12 campos de futebol, Göbeklitepe ainda tem muito mais para revelar, com os arqueólogos a estimar que precisarão de cem anos para o explorar na totalidade.
Situado num planalto da Mesopotâmia superior, Göbeklitepe ergue-se a 77 metros de altitude. O calcário que compõe o seu solo é até hoje considerado da melhor qualidade na região, o que poderá ter influenciado a escolha deste monte para a construção do local de encontro dos povos que aqui habitavam no Neolítico. Afinal, a localização de Göbeklitepe no topo de um monte, bem visível a uma longa distância, não será coincidência - segundo estudo etnográficos a construção de grandes estruturas comunitárias e os rituais que ali decorriam eram importantes para o reforço dos laços entre os diferentes grupos da região.
A secção central das escavações "dá uma perceção da vida social da altura", explica Ozan Bahce. O guia vai apontando para as pedras, muitas delas seguras por tábuas. Como local de encontro para os grupos de caçadores-recoletores da região, Göbeklitepe funcionava também como um centro de troca de bens e para o encontro de parceiros. Feitas estas descobertas, os arqueólogos perceberam que se trata de muito mais do que um local de culto, tendo também uma função económica e social.
Se tivermos dúvidas sobre a importância de Göbeklitepe para os homens que o construíram basta olhar para o esmero que puseram na sua decoração. Além das figuras humanas estilizadas nos pilares centrais em forma de T, os outros são decorados com figuras de animais, sempre machos, num reflexo do predomínio do masculino nestes grupos. Uma pequena figura humana no canto inferior de um dos pilares é uma rara exceção. "Ali, vejam", aponta Ozan, "não tem cabeça". O guia explica ainda que se o material para a construção de Göbeklitepe foi trazido até aqui se outros locais, as decorações foram feitas in loco. E para provar a criatividade destes homens do Neolítico mostra-nos uma escultura a três dimensões de um leopardo, a única aqui encontrada que está ligada a um dos pilares.
Mas havia mais esculturas de animais. E as que foram encontradas estão hoje expostas no Museu de Arqueologia de Sanliurfa - o maior da Turquia com os seus 76 mil metros quadrados. Aberto em 2015, o museu está dividido em várias secções. Numa delas podemos ver as esculturas trazidas de Göbeklitepe: javalis, leões, leopardos, etc. O ponto alto da visita é contudo a réplica em tamanho natural da câmara central de Göbeklitepe. Aqui já não estamos a olhar de cima para os pilares, estamos literalmente no meio deles, o que dá uma ideia muito melhor da monumentalidade do local. "Para um arqueólogo que estude o Neolítico, Göbeklitepe é o cúmulo da sorte. O que aqui vamos descobrindo está constantemente a mudar a História da Humanidade", explica Ozan.
Göbeklitepe e o "irmão" Karahantepe não estão, no entanto, sozinhos. Neste momento há 12 pontos de escavação que fazem parte do Tas Tepeler, sete dos quais já começaram a ser explorados: Göbeklitepe, Karahantepe, Gürcütepe, Sayburç, Çakmaktepe, Sefertepe, Yeni Mahalle, como explicou o ministro Mehmet Nuri Ersoy numa cerimónia cheia de pompa e circunstância no Museu de Arqueologia de Sanliurfa. Enquanto o chamamento do muezzin para a oração da noite ecoava pela cidade, nas paredes do museu eram projetadas imagens das peças encontradas em Göbeklitepe e Karahantepe. Num país rico em vestígios arqueológicos, das ruínas de Éfeso à Hagia Sophia, o empenho das autoridades turcas na divulgação e promoção destes locais de escavações ligados aos primórdios da civilização humana é tal que o presidente Recep Erdogan até deixou uma réplica de Göbeklitepe nos jardins da sede das Nações Unidas em Nova Iorque quando em setembro participou na Assembleia Geral da ONU nos Estados Unidos.
A dimensão do projeto justifica a dimensão da cerimónia, a que não faltou o hino turco e apresentação de uma estrela da televisão. E a garantia de que depois destes 12 pontos de escavação mais se seguirão, podendo chegar às três dezenas. Esta ideia foi reforçada por Mehmet Nuri Ersoy no dia seguinte em Karahantepe.
Num simpósio dedicado ao Neolítico, Yahya Coskun, vice-diretor-geral do Património Cultural e Museus da Turquia, lembrou que se atrair turistas é um objetivo claro deste Sanliurfa Neolithic Age Research Project, este "não se pode sobrepor à arqueologia". Empenhado em proteger as escavações, incluindo dos traficantes de arte, Yahya Coskun sublinhou que "se não explorarmos um local de interesse agora, podemos fazê-lo dentro de dez anos. Por isso é essencial a proteção dos locais".
Em cinco anos, as autoridades turcas esperam atrair para a região de Sanliurfa cinco a seis milhões de visitantes. "Este é um projeto significativo com o seu conteúdo magnífico e resultados impressionantes", entusiasmou-se o ministro Mehmet Ersoy, sublinhando a importância da "cooperação que foi planeada com 12 instituições e organizações, incluindo oito universidades na Turquia. Neste contexto foram ainda assinados protocolos de cooperação direta entre Universidade de Istambul, a Harran e a Bilim de Ancara. Envolvemos ainda oito universidades de cinco países diferentes, e quatro academias, institutos e museus, gerando um vasto alcance que passa pelo Japão, Rússia, Alemanha, Reino Unido e França. E para 2023 está já previsto um Congresso internacional sobre o Neolítico, aqui em Sanliurfa.
Mas não é só de parceiros internacionais que se faz este projeto. Também a população local está a ser chamada a participar, aproveitando também as oportunidades de emprego que lhe estão necessariamente associadas. Mas numa zona mais conservadora do que as cosmopolitas Istambul e Ancara, receber milhões de turistas estrangeiros pode revelar-se um desafio. Para já, o governador da província de Sanliurfa, Abdullah Erin Özgecmis recorda que esta zona é "uma testemunha única do Neolítico, que manteve a mensagem desses tempos durante 12 mil anos até a revelar agora". E espera que a abertura ao público de Karahantepe venha "contribuir ainda mais para o desenvolvimento da província".
helena.r.tecedeiro@dn.pt