No início era a inocência. Elfos de cabelos louros muito claros, uma paisagem luminosa e a ausência da palavra “morte”. Assim se apresentou no pequeno ecrã O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder, em 2022, recuperando um outro capítulo do imaginário mitológico que Peter Jackson levara ao cinema, e que há muito adormecera no vale eterno das fantasias épicas... Passada a primeira prova, apresenta-se agora a segunda temporada da série (Prime Video) que tentou recobrar algo do feitiço contido na própria escrita de J.R.R. Tolkien, esse grande artesão do mundo imaginado que articulou, talvez como nenhum outro autor, o fantástico e a comédia, o assombroso e o familiar num único universo, já de si repleto de nuances psicológicas. Nas palavras de um dos criadores, Patrick McKay, “esta é uma série para todos, e não apenas para quem se interessa, de modo particular, pela Terra Média ou por séries de fantasia. É para um público que nunca antes teve qualquer inclinação especial para estas coisas”. Disse, em resposta ao DN, numa de várias mesas-redondas virtuais. Mas se McKay fala no desejo de sucesso e naquilo que pode prender o espectador - “Há twists em cada um dos episódios desta temporada” -, é a escuridão de Sauron, o vilão atípico de Os Anéis do Poder, que desta feita leva a melhor, segundo o cocriador John D. Payne: “Na verdade, trata-se de um thriller psicológico”, sublinha. “Há aqui algo mais duro, mais nebuloso e misterioso. Acima de tudo, e no fim de contas, não queremos que os espectadores sintam que estão na Nova Zelândia ou em Inglaterra - queremos que se sintam na Terra Média.” Pois bem, estamos de regresso à Terra Média dos livros de Tolkien e a uma das mais celebradas aventuras literárias do século XX, com personagens para todos os gostos e feitios, terras longínquas de uma rebuscada ficção mental e infinitos detalhes de linguagem, que fazem qualquer ator perder a cabeça. “Eu gosto do desafio”, confessa-nos noutra roundtable Benjamin Walker, quando lhe perguntamos sobre a “loucura” de habitar um mundo em que os detalhes importam numa escala gigantesca. Para o ator que interpreta o Alto Elfo Gil-galad, não há dúvidas: “O nível de detalhe e também a profundidade que Tolkien colocou no seu trabalho são os nossos recursos, algo que exige respeito e dedicação. Mas temos sorte de estar a trabalhar numa série televisiva, porque é um contexto em que há tempo para desfrutar daqueles mundos, e há partes de um vocabulário inventado à tua disposição...”. Ideia que o elfo Elrond, de Robert Aramayo, completa, não menos fascinado com o espírito da letra: “E há a questão de ser extenso! As personagens dos elfos neste universo de Tolkien são muito diversas, e têm qualidades inesperadas ao longo da história: vemos os elfos conforme a perspetiva de outras personagens. Aprecio especialmente que ele os tenha escrito dessa forma.” .O Alto Elfo Gil-galad (Benjamin Walker)..O elogio da escrita.Nas sucessivas conversas com os atores em pares ou trios, uma constante deste ato promocional de The Lord of the Rings: The Rings of Power (no original) foram os louvores aos cocriadores e argumentistas Patrick McKay e John D. Payne. Desde logo, o ator Lloyd Owen, que se revelou um autêntico cavalheiro, à semelhança da sua personagem, o capitão Elendil, conhecido no ambiente do reino de Númeror, na primeira temporada. Uma personagem amiga dos elfos que surge agora com o semblante mais pesado... Sobre a sua melancolia, o DN quis saber como se processa nesta temporada. E a resposta veio com pausas elegantes: “Há uma maior tristeza em Elendil, sem dúvida. Inicialmente já havia, por ser viúvo. Mas agora há um elemento extra nessa tristeza que é o facto de a decisão dele, juntamente com [a elfa] Galadriel, ter causado a perda do seu filho. Por isso, o seu sentido de dever, e também o sentido de fé e instinto - que o empurrou para o lado de Galadriel e para a decisão da guerra -, deixou-o com um enorme sentimento de culpa.” Diz precisamente o homem que encarna o arquétipo do herói. “O grande privilégio passa por me apoiar na escrita destes argumentistas, JD e Patrick, que o moldaram a partir da sua própria interpretação de quem o escreveu. Como ator, espero que venha a corresponder a um ser humano falível, alguém que vai tomar más decisões, que por momentos vai estar do lado errado da história... No fundo, espero que ele esteja o mais confuso possível.” .O casal Durin e Disa (Owain Arthur e Sophia Nomvete)..E confusão alegre foi aquilo que se encontrou na janela virtual com a dupla Owain Arthur e Sophia Nomvete, intérpretes do casal de príncipes anões Durin e Disa, que rejubilaram quando lhes perguntámos qual o segredo para, juntos, serem das presenças mais fascinantes da série. Arthur remeteu logo para o dito trabalho dos argumentistas, mas a interrupção espirituosa de Nomvete para o corrigir - dizendo que “há aqui amor genuíno” - não deixou de levar a um pouco mais de elaboração por parte de quem “só estava a tentar ser modesto”. .Acontece que os dois estão muito confortáveis um com o outro, tanto “à frente da câmara como nos bastidores”. Mas não há volta a dar: “Tudo encaixa através da escrita, da especificidade com que se escreveu este casal. Depois, acho que quanto mais os criadores nos conhecem, quanto mais percebem quem somos fora do ecrã, mais entusiasmados ficam na definição das personagens. Portanto, isto evolui a partir de qualquer coisa verdadeira - e ficamos muito felizes por saber que resulta”, contenta-se Nomvete. .Entre a bondade e a vilania.Outra personagem que resulta lindamente é The Stranger, de Daniel Weyman, cuja doçura, ladeada pelas duas amigas Harfoots, Markella Kavenagh e Megan Richards, não deixa ninguém indiferente. Como é que agora, que já consegue falar, este bom gigante poderá evoluir humanamente? “Excelente questão... Diria que estou sobretudo focado em desenvolver a personagem que vem da primeira temporada e que cresceu com estas duas raparigas [Kavenagh e Richards], fundamentais para a sua pessoa. A forma como ele comunica já não é física, por isso interessa-me ver o que acontece, em vez de tentar controlar a sua comunicação - e tem sido muito divertido. Não sei ainda como vai parecer, mas é um bocadinho o efeito peixe fora d’água: ele sentia-se em casa com os Harfoots e naquela paisagem, mas agora estamos todos num novo lugar, a conhecer novas comunidades.” Um enorme contraste, entenda-se, com a postura do maldito Sauron, que nos últimos episódios da temporada anterior revelou a sua identidade: “Não é que ele seja um bom rapaz...”, começa por brincar o ator Charlie Vickers. “Admito que não é. Mas tem intenções de regenerar, reorganizar, reabilitar a Terra Média - tudo vem daí! Percebo que o papel dele na história seja o de um vilão, mas para mim, como ator, é interessante interpretar as suas intenções.” Intenções: não são elas o princípio da fantasia? O que importa é que nos sintamos na Terra Média.