Neste tempo em que o mundo dos ricos inspira sátiras tão eficazes como Succession ou The White Lotus, O Refúgio Atómico vem provar que os espanhóis têm estado atentos a esse fenómeno atrativo que é ver gente endinheirada em apuros - enfim, diferentes graus de apuros. A pensar nessa fatia privilegiada da população, a nova série de Álex Pina e Esther Martínez Lobato, agora em estreia na Netflix, concebeu um lugar onde o seu comportamento pode ser observado quase em termos laboratoriais. Um refúgio atómico, como esclarece o título, que se construiu com o dinheiro de quem está disposto a pagar o que for preciso para sobreviver a uma terceira guerra mundial. De preferência, com a tecnologia, o aparato e o staff adequados à sua conta bancária...É verdade que, ainda no início do ano, outra série americana, Paradise, abordou a relação de um cenário de catástrofe com a sobrevivência daqueles que tinham abundantes recursos para garantir o seu “paraíso” no fim do mundo. Mas El Refugio Atómico, apesar da semelhança temática, vai por outros caminhos. Aliás: basta lembrar que os seus oito episódios saíram da pena dos criadores do megassucesso La Casa de Papel e Berlim, exemplos de uma agilidade narrativa capaz de pôr a um canto muitas das grandes produções que chegam regularmente às plataformas de streaming.Quando a série começa, ainda não estamos no interior do dito bunker de luxo chamado Kimera. É preciso conhecer primeiro uma das personagens que lá vai entrar, cuja tragédia pessoal se liga ao facto de ter de reencontrar no abrigo outra família com quem tem uma “dívida”. Ou seja, antes da atmosfera de urgência que dá conta do risco de escalada de uma guerra (algo que já está à flor da pele do espetador), somos inteirados de um drama familiar que poderá ser combustível para as relações humanas dentro do refúgio. De resto, um lugar secreto, impossível de localizar, e supervisionado por uma mulher que a princípio parece ser apenas a responsável pela manutenção do equilíbrio emocional do grupo, mas, no fundo, é a dona daquilo tudo.Depois disto, quanto menos se souber melhor. Até porque o primeiro episódio é um carrossel de revelações e reposicionamentos da perceção de quem vê; ou não estivéssemos a falar de um método - como testemunhado nas séries anteriores de Álex Pina - que passa pela recapitulação de gestos de uma cena ou sequência, para degustar determinada arte humana.. O certo é que, no meio de um meticuloso design de produção estilo anos 50, El Refugio Atómico espelha uma energia muito contemporânea, tocando questões a que não podemos escapar nos dias que correm, desde a informação manipulada ao jogo de “perceções” da realidade. Talvez por isso seja melhor estar protegido e longe da superfície terrestre, a tratar da saúde mental e dos pensamentos negativos com exercícios de gestão de humor, olhando para janelas digitais que funcionam como paisagens confortáveis, num absoluto compromisso de bem-estar. Em suma, não há terceira guerra mundial que possa afetar os milionários.A ficção científica é agoraIsso mesmo ficou claro ao DN, quando visitámos os bastidores da série, em novembro do último ano. Com um espaço pensado ao detalhe pelo diretor artístico Abdón Alcañiz (que trabalhara igualmente a imagem de La Casa de Papel e Berlim), O Refúgio Atómico assume-se como um dos mais ambiciosos projetos da produção espanhola, inspirado por uma reportagem sobre bunkers de luxo construídos no pós-pandemia. Numa entrevista ao jornal El País, o criador Álex Pina, falava, pois, desse aspeto interessante que é a atual indistinção entre naturalismo e ficção científica: “A situação geopolítica piorou, e aquela nota que muitas vezes se põe no início de uma obra de ficção - ‘baseado em factos reais’ - está cada vez mais próxima”. Não se espere então a típica abordagem apocalíptica, com muitos tons de cinzento. Aqui, as cores vivas e vincadas são parte de uma expressão hábil, um modo de contar histórias que implica uma certa leveza de entretenimento, ou uma noção de alta competência televisiva. Que é como quem diz, temos rebuçado para os fãs de La Casa de Papel. .Por dentro de ‘O Refúgio Atómico’: uma série de luxo a chegar à Netflix