O medo come a alma
Com interpretações estupendas de Barbara Sukowa e Martine Chevallier, Nós Duas é uma surpreendente abordagem da intimidade feminina: o amor lésbico no outono da vida. Eis a proposta da primeira longa-metragem de Filippo Meneghetti.
Talvez importe esclarecer, desde já, o título deste texto. A nossa citação direta da obra-prima de Rainer Werner Fassbinder justifica-se pelo mais elementar da história de Nós Duas. A saber, se em O Medo Come a Alma (1974) temos a relação amorosa entre uma mulher sexagenária e um imigrante muito mais novo, que causa choque e rejeição nos filhos dela e na vizinhança, retratando-se o par ostracizado, na longa-metragem de estreia do italiano Filippo Meneghetti é o romance secreto entre duas mulheres septuagenárias que representa um medo avassalador para uma delas, na hora de revelar aos filhos a verdade sobre a sua vida íntima. Tão avassalador que o corpo quase não resiste ao seu tormento social.
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Mas há ainda outra ligação ténue a Fassbinder: Barbara Sukowa, a atriz que interpreta a mais livre dessas duas mulheres, Nina, foi uma das musas do gigante alemão, tendo começado a carreira no cinema, recorde-se, justamente como personagem titular de um filme seu, Lola (1981).
Assim, tocado ao de leve pelo fantasma de Fassbinder, mas com outra leitura do género melodramático, o filme de Meneghetti traz qualquer coisa de refrescante ao panorama das narrativas queer, na sua maioria conotadas com uma ideia de corpo jovem.
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Não é que Nós Duas se dedique simplesmente a provar que o amor lésbico em idade avançada é tão retratável como qualquer outro. Acontece que as escolhas do realizador colocam a nossa atenção em algo que está para além do tradicional quadro afetivo. Quer dizer, Meneghetti podia ter caído na tentação de criar um objeto de ternura enjoativa, acomodando-se ao facto de já ter um ponto de partida pouco comum. Mas a verdade é que o filme evolui para um território quase experimental que quebra os clichés românticos, sem deixar de fazer o mais profundo elogio ao romantismo capaz de unir duas pessoas até ao último recurso.
O segredo de Deux está literalmente entre portas. As portas dos apartamentos de Madeleine (Martine Chevallier) e Nina, uma em frente à da outra, numa pacata cidade francesa. Durante décadas elas foram amantes às escondidas, mas agora que a primeira ficou viúva o plano é sair da toca, vender os apartamentos, contar tudo a quem de direito e partirem juntas para Roma, onde se conheceram, para viver a relação como sempre quiseram.
Só há um empecilho: o terror que Madeleine tem de deixar cair a máscara da convencional senhora francesa perante o filho e a filha, adultos cujo julgamento pode antecipar. O medo é tanto que, na ocasião em que era imperativo fazê-lo, ela adia o inadiável pondo Nina num estado de fúria só ultrapassado pelo que depois sucede à própria Madeleine...
É essa viragem dramática do filme que faz Nina/Barbara Sukowa tomar as rédeas de um autêntico thriller amoroso, assim que se vê afastada da sua metade.
De um momento para o outro, Madeleine está sob vigilância de uma cuidadora contratada pelos filhos e Nina não sabe o que fazer. Para não trair a amante, ela tem de continuar a fingir ser apenas a amigável "vizinha do lado", mas à medida que o tempo passa, as suas ações tornam-se gradualmente mais arriscadas, dando conta de um lado selvagem que põe a prestação de Sukowa ao nível de uma heroína de Chabrol ou de uma personagem dos romances de Ruth Rendell.
Meneghetti aposta muito nesta ansiedade motivada pelo amor, que é também uma ansiedade fílmica, refletida nas várias vezes que Nina espreita pelo olho mágico da porta ou se aventura na escuridão para ir ao encontro da outra. E ao fazê-lo leva o filme para uma originalidade formal que, pelos seus floreios de suspense e alguns apontamentos oníricos, tanto pode enervar como fascinar - é um risco assumido e perfeitamente sustentado pelas interpretações de Chevallier e Sukowa, podendo dizer-se que esta última encarna a inteligência e beleza ambígua da proposta. De resto, não é todos os dias que atrizes na casa dos 70 são contempladas com papéis tão desafiantes.
Os tons outonais de Nós Duas sugerem a elegância e arrumação dos bons dramas urbanos franceses. Mas o que se descobre com a segunda parte da história é um cineasta com vontade de desestabilizar o espetador, roubando-lhe as coordenadas e transformando um conto sobre a intimidade de duas mulheres num vínculo de aço que reage a qualquer agressão externa.
Nina/Sukowa não é apenas alguém em desespero, é uma guerreira disposta a tudo para salvar a sua frágil amada. E o espaço apertado do(s) apartamento(s) onde ela opera torna a experiência ainda mais obsessiva.
Numa entrevista ao site Cineuropa, Meneghetti resumiu assim a origem do filme: "Um amigo meu contou-me uma história sobre duas vizinhas que ficaram viúvas ao mesmo tempo. Para fazerem companhia uma à outra, deixavam as portas dos seus apartamentos - que ficavam em frente uma da outra - escancaradas. Estou sempre à procura de metáforas simples da vida real, e estes apartamentos espelham a sua [de Madeleine e Nina] vida interior. O de Madeleine está cheio de fotos e souvenirs, mas o de Nina é quase fantasmagórico".
Tudo o que a retém é o amor da porta ao lado.