Nicolas Cage a contas com os sonhos dos outros: um combate desigual. 
Nicolas Cage a contas com os sonhos dos outros: um combate desigual. 

O Homem dos teus Sonhos - Nicolas Cage entre sonho e pesadelo 

Mais ou menos perdido em filmes rotineiros, Nicolas Cage surge agora a interpretar um professor que “assombra” os sonhos dos outros - 'O Homem dos Teus Sonhos' é uma tentativa curiosa, mas menor, de construir um conto moral sobre a decomposição das relações humanas.
Publicado a
Atualizado a

O mínimo que se pode dizer da carreira de Nicolas Cage é que se tornou razoavelmente agitada - há quem seja menos brando e a classifique como caótica. Notícias vindas de Hollywood descrevem o labor de Cage ao longo das duas primeiras décadas deste século XXI como um turbilhão de problemas pontuado por dívidas e incumprimentos fiscais.

Não se trata, entenda-se, de alimentar a viscosidade “tablóide” e substituir a observação de um trabalho artístico, seja ele qual for, pelo retrato grosseiro da vida privada do respetivo protagonista. Acontece que, quando observamos a filmografia recente de Cage, percebemos que ele optou por um delirante “salto para a frente”, de tal modo que, depois do magnífico World Trade Center (2006), de Oliver Stone, o seu nome surgiu no elenco de mais de meia centena de filmes.

Mesmo não tendo visto uma boa parte de tão prolixa atividade, quase todos os exemplos que conheço são sintoma de uma “necessidade” de se expor em personagens mais ou menos bizarras, por vezes banalmente caricaturais, algures na fronteira entre os equívocos do narcisismo e o masoquismo criativo - como se Cage quisesse disfarçar a futilidade de alguns projetos através de performances exibicionistas, grosseiras e, por fim, de uma triste auto-indulgência.

O seu novo filme, Dream Scenario, entre nós chamado O Homem dos Teus Sonhos (estreia hoje), não será alheio a tais atribulações. Em qualquer caso, a sua premissa é de tal modo desconcertante que justifica alguma atenção: Cage interpreta Paul Matthews, um professor universitário que começa a aparecer nos sonhos de muitos pessoas, incluindo alguns dos seus alunos e amigos…

Ver ou não ver

É quase uma fábula - o dispositivo situa-se a meio caminho entre os clichés de algum cinema de terror (por estes tempos, explorados através de infinitas repetições) e as ambivalências da chamada comédia negra (se quisermos ser simpáticos, diremos que a herança de Tim Burton passou por aqui). Com uma nuance que vale a pena sublinhar: Paul começa por aparecer nos sonhos como personagem passiva, “permitindo” que os sonhadores sejam sujeitos a múltiplas agressões, num inusitado crescendo de violência.

Cage interpreta a situação com um misto calculado de realismo e burlesco, como alguém que está sujeito a assumir um papel social que, de facto, não escolheu. O filme é sempre mais interessante e, a meu ver, mais eficaz, quando evita a figuração, isto é, a apresentação “explícita” de imagens dos sonhos. Quando não “vemos” o que perturba os sonhadores, a passagem para o pesadelo é dramaticamente mais envolvente; a partir do momento em que tal passagem se torna palpável, entramos no domínio dos “truques” visuais do mais rotineiro cinema de terror. Para lá de tudo isto, vai-se insinuando uma outra sugestão, por assim dizer, mais “sociológica”: Paul começa a ser visado pelos “valores” do chamado cancelamento social, vendo-se forçado a defender o seu lugar no espaço familiar, tanto quanto o seu estatuto profissional.

Enfim, a originalidade do ponto de partida e as sugestões dramáticas vão-se esboroando. Na última parte prevalece a asserção mais simples - não há fronteira entre o “real” e o “onírico” -, tratada com algumas piruetas de encenação, incluindo o “sonho” final, que refletem a dificuldade de sustentar uma verdadeira narrativa.

A arte de sonhar

O Homem dos Teus Sonhos é a segunda longa-metragem, primeira em língua inglesa, do norueguês Kristoffer Borgli. Estreara-se, no seu país, com Farta de Mim Mesma (2022), filme também apostado em desconcertar o espectador - uma jovem que degrada o seu próprio aspeto físico para chamar a atenção dos outros -, desembocando num sermão moral sobre a decomposição das relações humanas e o triunfo do cinismo social.

Claramente hábil na gestão técnica do seu trabalho e também na escolha dos colaboradores - O Homem dos Teus Sonhos tem música original do canadiano Owen Pallett -, Borgli parece pertencer a essa galeria de cineastas contemporâneos que confundem a apresentação de premissas sugestivas com a construção de um verdadeiro argumento de cinema. Para nos ficarmos pelo património da comédia negra, digamos que há mais ambiguidade, perturbação e humor num plano de paisagem de O Terceiro Tiro (1955), de Alfred Hitchcock, do que na acumulação de “surpresas” com que O Homem dos Teus Sonhos tenta envolver o espectador.

Enfim, não podemos deixar de continuar a reconhecer o talento de Nicolas Cage, ainda que tão frequentemente esbanjado. Para que não simplifiquemos e, sobretudo, para evitar reduzir a história do cinema às manchetes dos últimos seis meses, vale a pena recordar que ele é um profissional capaz de lidar com os mais radicais desafios, tal como aconteceu nos dois títulos que lhe valeram nomeações para o Óscar de melhor ator: Morrer em Las Vegas (1995), de Mike Figgis, e Inadaptado (2002), de Spike Jonze. Ganhou com o primeiro e, curiosamente, em ambos os casos interpretava argumentistas de cinema - como alguém diria, parece um sonho.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt