Teolinda Gersão regressa à correspondência entre figuras famosas para as reconstituir
Teolinda Gersão regressa à correspondência entre figuras famosas para as reconstituir

O fim do silêncio de Martha Freud

Durante os anos de noivado, Sigmund Freud e Martha Bernays trocaram mais de um milhar de cartas. Teolinda Gersão dá voz à mulher que o psiquiatra calou.
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Não é habitual em Portugal estudar as cartas trocadas entre pessoas célebres e que todos conhecem, daí que sejam poucos os livros que se desenvolvem sobre correspondência. No entanto, Teolinda Gersão decidiu fazê-lo e escolheu uma “desconhecida” dos portugueses e de muitos do mundo: Martha Bernays, mais conhecida por Martha Freud. A escritora é reincidente, pois o seu último livro intitula-se O regresso de Júlia Mann a Paraty e a epistolografia já estava na base dessa excecional narrativa.

Sem a sombra constante de Sigmund Freud talvez esta Autobiografia não escrita de Martha Freud mais não fosse do que um livro destinado a poucos leitores, afinal Freud já foi enterrado e poucos se interessam por ele devido ao anacronismo de muitas das suas teses, mesmo que também desenterrado por este ou aquele motivo. Apesar do objetivo da autora ser o de retratar Martha, é Freud que em muito está presente nesta aventura literária, pois o que esta mulher conta só se afirma através da relação com o psiquiatra de Viena. Ou seja, ressuscita-se mais uma vez Freud por via de Martha, nada, repita-se, que seja habitual entre nós e por isso esta Autobiografia torna-se um exercício inovador entre nós.

O que Teolinda Gersão refaz é esse espelho onde Martha Freud se observa tendo como superfície refletora Sigi, através da correspondência trocada entre os dois enquanto enamorados, noivos e prestes a casar, uma vivência que vai crescendo em terror e que mais parece uma ficção do que a realidade. Não faltou “material” de inspiração, pois o duo trocou 1500 cartas durante o período em que se conheceram, namoraram e se casarem em 1886, correspondência que há poucos anos foi em muito publicada por uma editora alemã. Desta vez, o noivado que foi mantido secreto é desvendado e, principalmente, podemos conhecer por via de Martha quem era Freud. Um monstro emocional, conforme facilmente se depreende das interpretações de Martha face aos escritos que revelam os medos, as falsas aparências e as atitudes pouco fiáveis e decentes por parte do homem que amava. Um exemplo: “Só sei que és minha se, pelo menos no que é central e importante, aceitares as minhas opiniões e modos de agir, e os fizeres teus.”

Nada que não fosse “normal” num homem à época, nem nas mulheres subservientes da altura, mas as revelações que Martha vai fazendo dão um Freud ainda mais detestável e questionável do que já é hoje o seu legado de complexos e de  interpretações do desejo. Outro exemplo: “Descobri no meu próprio caso o fenómeno de me apaixonar pela minha mãe e ter ciúmes do meu pai, e considero isso um acontecimento universal do início da infância.”

A autora faz ao longo de quatrocentas páginas essa revelação de um namorado sem esquecer o verdadeiro motivo do livro, a autobiografia de Martha Freud. Que seria um projeto da própria Martha Bernays após ter descoberto essa correspondência pré-casamento e que no fim de uma vida como Martha Freud equaciona a sua partilha com o mundo. É com esse conflito que Teolinda Gersão inicia o livro, exibindo as dúvidas da viúva, que acaba por se negar à proposta que equacionou: “Escrever a minha autobiografia”. Ainda começa, ultrapassa as dúvidas que surgiram, e ao lançar-se na escrita sentia-se satisfeita, o tempo voava e em cada dia o prazer recomeçava… Contudo, a dado momento, deixa de lhe interessar e é dada como justificação uma verdade que se irá compreender de forma muito clara nesta reconstrução da escritora quando coloca Martha a dizer: “De repente deixei de ter um objetivo. Interrompi-me, assustada, no meio de uma frase, para me refugiar na poltrona do meu quarto, esmagada pela certeza de que a tarefa estava condenada à partida: Sou apenas figurante numa narrativa alheia.”

Teolinda Gersão refaz essa desistência por parte de Martha Freud mas substitui-se a ela e constrói aquilo a que tem todo o direito de intitular Autobiografia não escrita de Martha Freud. O material epistolar de que dispõe e o seu conhecimento da obra de Freud é grande. O que lhe interessou foi “construir não um romance histórico, de que não sou adepta, mas uma narrativa que respeita as personagens e as pretende interpretar com objetividade, procurando conexões entre sentimentos e acontecimentos, de modo a encontrar-lhes um sentido coerente e credível.”

Para Teolinda Gersão o que mais interessava era “imaginar Martha a reconstituir o seu percurso, sobretudo após a morte de Freud, a quem sobreviveu doze anos, e assim encontrar-se a si própria e ao complexo e multifacetado homem da sua vida”. Como aval, a escritora deu o seu “interesse de ficcionista nos casos em que escritos íntimos de figuras reais sobreviveram, pois é à luz do que neles revelam que se deve tentar compreendê-las.” Não faltam revelações nesta Autobiografia que concedem à biografada um outro perfil que não o forçado pelo sisudo Freud, até porque este sempre a utilizou para debater o seu próprio trabalho. Felizmente, para Teolinda Gersão e para os leitores, que estas 1500 cartas não se evaporaram.

Autobiografia Não Escrita de Martha Freud
Teolinda Gersão
Porto Editora
417 páginas

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Revisão do 25 de Abril (1)

Uma das palavras dominantes desta recolha de textos de António Barreto sobre a Revolução de Abril é “Liberdade”. Vai aparecendo frequentemente como sendo o grande legado do regime que sucedeu ao Estado Novo apesar de todos os tropeções que a Democracia foi dando. Daí que escreva “O que o 25 de Abril acabou por revelar é que a liberdade está acima de tudo” e que mesmo com os ataques à Democracia essa sensação raramente respirada na história de Portugal antes de 1974 ficou garantida até ao momento de se comemorar o seu meio século de existência. Outra das linhas de força deste livro é fazer questão de não esquecer que o derrube do anterior regime se deveu aos militares e não à luta civil ou partidária, bem como faz questão de fixar o que aconteceu a 700 mil portugueses que viviam no “Ultramar”.

Abril
António Barreto
Relógio D’Água
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Revisão do 25 de Abril (2)

No Breve Epílogo, a autora desta série de entrevistas, justifica que muito deste seu trabalho pode interessar aos leitores que estiveram “lá” mas em muito aos que “lá” não estiveram e “precisam de saber como foi”. O “lá” mais não é do que o 25 de Abril e os tempos que se seguiram ao fim do anterior regime. Pelas 16 conversas vão desfilando muitos dos protagonistas dos primeiros anos da luta pela Democracia e outros que foram surgindo, digerindo os meandros da História, os seus bastidores, os truques políticos e as novas interpretações para factos menos recentes. Maria João Avillez faz um interrogatório cerrado e acumula uma veia de historiadora à da jornalista que tem estado sempre na linha da frente das grandes perguntas aos políticos que têm entrado no processo de mudança de Portugal nas últimas cinco décadas.

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D.Quixote
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