Em Portugal é complicado o cinema afro-americano chegar aos ecrãs. Questão cultural? Medo de um preconceito racial? Seja o que for, a distância com os temas de filmes sobre questões negras americanas tem levado os distribuidores a chutar esses filmes para o mercado do Home Cinema. É o que aconteceu com Judas e o Messias Negro, de Shaka King, que mesmo com múltiplas nomeações aos óscares, incluindo melhor filme, não teve luz verde da Warner para chegar às salas. O historial dos filmes com atores afro-americanos fez com que a NOS Audiovisuais não apostasse numa estreia em sala, mesmo quando uma obra como Moonlight, de Barry Jenkins, vencedor dos Óscares em 2017, fez números auspiciosos. No caso deste Judas and The Black Messiah a ironia ainda é mais cruciante: o filme venceu o Óscar de melhor ator secundário (Daniel Kaluuya) e melhor canção (H.E.R.). Entretanto, quem o quiser ver é carregar no botão do seu comando e o apanhar no videoclube da sua operadora televisiva: é um dos destaques, sendo que depois do "boom" do cinema nas plataformas cada vez menos gente paga para alugar filmes neste sistema....Goste-se ou não dos resultados finais, esta obra de estreia deste cineasta afro-americano tem a mais-valia de servir como objeto didáctico sobre os méritos de Fred Hampton, 21 anos, ativista e líder dos Black Panthers. O filme narra não só todo o processo que levou o FBI a colocar um infiltrado na delegação de Hampton em Illinois, mas também todos os seus esforços para servir uma comunidade negra negligenciada, conseguindo importantes conquistas no direito de educação e participação cívica da comunidade negra. Hampton que viria a ser morto pela polícia em 1969 enquanto dormia com a namorada grávida..A narrativa do filme é muitas vezes contada a partir de William O"Neal, o informador do FBI que se infiltrou no seio do partido e ganhou a confiança de Fred. William era um pequeno criminoso que para não ser preso acabou por concordar em ser os olhos do governo americano no seio dos Panteras. Um infiltrado que esteve perto em todos os processos de gestão de Fred, em especial na forma como congregou diversas facções de ativistas negros. O filme mostra todo o lado ambíguo desse informador, a dada altura consumido pela sua própria culpa, sobretudo por estar a trair quem lhe deu a mão, não deixando de retratar todo os esforços do governo americano em fazer uma campanha de desinformação contra o partido Black Panthers, visto pela maioria dos americanos como extremista e ameaçador. De certa forma, trata-se de um filme militante, tendo mesmo uma voz feroz de denúncia política. Não é por acaso que numa altura em que a América ainda vive o choque dos recentes ataques de brutalidade policial branca, um filme como estes seja visto como um grito de uma comunidade. Mesmo com o logo da Warner Brothers, a génese do filme tem investimento afro-americano genuíno. Nestes últimos Óscares bateu-se mesmo um recorde: foi o primeiro filme nomeado a melhor filme inteiramente produzido por afro-americanos..Como obra de arte, Judas e o Messias Negro tem alguns "contratempos". Cria o chamado crescendo de emoções ou "build up" emocional de forma algo arrastada. Não só denota algum academismo nessa gestão da narrativa como todo o esquema inicial da entrevista ao protagonista parece carecer de efeito novidade. Estamos cada vez mais saturados de histórias verídicas que começam com esse mecanismo para depois recorrer ao habitual "flashback". Por muito que tudo seja feito com causa e um estoicismo na denúncia, também fica à vista um certo efeito ilustrativo da mensagem, coisa sempre comprometedora num filme que recria um pedaço da História americana com parcialidade..Pior do que isso, estamos perante um objeto que nunca se desamarra das contingências do "thriller" e das explicações históricas nas quais está incluído um ataque ao plano tenebroso de J. Edgar Hoover, mesmo quando sentimos alguns fogachos de ousadia, em especial no momento em que a câmara parece entrar em transe com o poder discursivo de Fred Hampton..Independentemente de tudo isso, o filme tem o mérito de nos apresentar de corpo inteiro Fred Hampton, figura impossível de esquecer de uma luta afro-americana contra as desigualdades raciais, ele que foi assassinado pelo Estado americano exatamente 20 meses após o assassinato do Dr. Martin Luther King. E isso é conseguido pela interpretação tão elétrica como robusta de Daniel Kaluuya como Hampton. Uma interpretação que chegou para um Óscar secundário mas que muitos notam ser uma interpretação principal. Aliás, a Warner tinha colocado LaKeith Stanfield como ator principal e o britânico Daniel Kaluuya como ator secundário, mas nas nomeações os membros da Academia trocaram as voltas e os dois atores foram nomeados como secundários. Diga-se de passagem, LaKeith "desaparece" no seu Judas com uma finesse impressionante....Judas e o Messias Negro está longe de ser o filme que faz justiça à causa dos Black Panthers mas não deixa de ser extraordinário o facto de não ter tido luz verde para estrear em Portugal..dnot@dn.pt