O filme mais chalupa do mundo
O novo filme da dupla Os Daniels não é a obra-prima que muitos querem vender mas é a possibilidade de aderirmos a um filme que parece criado numa ala de psiquiatria de um hospital excêntrico. Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo tem Michelle Yeoh como super-mãe a viajar no tempo e em universos paralelos.
Balada de amor de mãe, comédia de crise conjugal, revolução de artes marciais e fantasia filosófica. O novo filme dos Daniels é evidentemente tudo isso ao quadrado. Everything Everywhere All At Once é uma diversão tão complexa como insana, o filme que criou furor no South By Southwest e que poderá vir a ganhar a alcunha do novo O Tigre e o Dragão, mesmo se for nítido que Dan Kwan e Daniel Scheinert não terem nada a ver com o cinema de Ang Lee. Os que conhecem Um Corpo para Sobreviver/Swiss Army Man (2016) (por cá apenas apareceu nos videoclubes) sabem que desta dupla há um cinema radicalmente exploratório, esse era um dos verdadeiros grandes filmes de culto da década anterior.
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Centrado numa possibilidade de multiverso, ou seja, de múltiplos universos paralelos à nossa realidade, somos convidados a acompanhar a saga da senhora Wang, uma emigrante chinesa na América, dona e gerente de uma lavandaria a contas com uma crise conjugal e aflita para compreender a sua jovem filha, Joy, cujo objetivo é confessar a sua homossexualidade ao avô. Tudo desaba quando é confrontada com uma versão do marido vinda de uma outra dimensão temporal. De repetente, vê-se num universo onde tem de lutar contra a filha através de uma série de vidas que não viveu, desde estrela de filmes de artes marciais a sinaleira publicitária.
Estamos na presença de um dos pontos de partida mais dementes de um filme de Hollywood em muitos anos. Uma explosão de criatividade estilística capaz de misturar géneros e registos, resultando numa autêntica provocação sensorial. Poder-se-á mesmo falar em bravura de conceito, não só por subverter regras daquilo que se pensa como um filme de entretenimento puro mas também no próprio dinamitar das perceções da herança do cinema industrial de super-heróis. Afinal de contas, numa altura em que o último Homem-Aranha acentuou a tónica dos universos paralelos, este gancho ganha aqui uma espécie de carga filosófica através de uma teoria do caos cujas consequências de cada decisão criam uma lógica de mundos infinitos... Obviamente, trata-se de um processo que acarreta alguma possibilidade de fadiga desta exploração do multiverse e o próprio motor do filme tem uma exigência conceptual algo morosa, mas se ultrapassarmos o cansaço inicial as restantes partes do filme tornam-se mais prazenteiras...
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No meio da loucura e desse tal caos, surge um esplendor técnico que é de uma desenvoltura galopante. Soa a novidade e, tal como em Swiss Army Man, desafia convenções, capaz de ir buscar ideias do arco da velha que julgávamos que ninguém tinha coragem, como um romance entre duas lésbicas com dedos de borracha longos. Adira-se ou não, fica criado um universo muito próprio, seguramente com um impacto semelhante àquele que surgiu dos Waschowski após o primeiro Matrix. E, verdade seja referida, o sentido da vida desta super-mãe chinesa, atinge uma profundidade emocional maior do que se pensava, talvez até incompatível com pipocas numa sala de cinema em centro comercial...Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo é cinema de autor legítimo.

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