O estanho mundo de Charlie Kaufman
Balada triste, tristíssima sobre uma ideia de fim. Acabar com a vida, acabar com uma relação. Em I'm Thinking Ending Things, Charlie Kaufman, depois da animação Anomalisa, volta aos temas da angústia humana e de toda a complexidade dos traumas existenciais, mas desta vez a teia narrativa tem torpedos que tiram o tapete ao espetador: nada é o que parece e as camadas temporais fundem-se como um bizarro puzzle acerca do sentido da vida.
Filme sobre o tempo e as marcas da sua passagem, é também uma experiência para testar a nossa capacidade de acreditar ou a suspensão da descrença como caldeirada metafórica. Mas se tudo é "meta", tal como nos argumentos mais badalados de Kaufman, Queres ser John Malkovich ou O Despertar da Mente, o surreal ganha uma proximidade àquilo que é mais real: as vidas falhadas, o medo da solidão, os fantasmas da morte e o sinistro do quotidiano.
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Em jeito de comédia desencantada vamos conhecer as neuroses de um jovem casal numa visita à casa dos pais, algures num cenário rural. Mas o aviso do nada é o que parece é mais literal do que se pensa: a protagonista chama-se Lucy mas também é Louisa ou, provavelmente, terá ainda outro nome, já para não falar que primeiro percebemos que é estudante de física-quântica mas depois já será uma especialista de estudos cinematográficos (delicioso o momento onde cita a crítica Pauline Kael acerca de John Cassavettes...) ou estudante de pintura. Depois, na casa dos pais, surgem uma série de acontecimentos absurdos: desde uma cave sinistra, passando por uma fotografia do namorado na infância que pode ser uma fotografia sua, já para não falar da mudança de idade permanentemente dos pais...
O mais surreal neste quebra-cabeças metafísico a partir do livro homónimo de Ian Reid são as pequenas ideias geniais de contra-narrativa de Kaufman, capaz de por exemplo guinar a história para o musical ou incluir um excerto imaginário de uma drama de Robert Zemeckis. São coisas nunca dantes vistas num sistema de "storytelling" e aí o efeito de estranheza consegue uma abrangente e significativa sensação de sonho e pesadelo. Não tem nada a ver com os universos de David Lynch, se há aproximação a uma certa bizarria é à de Buñuel, mas pela complexa claustrofobia pensamos ainda em Mãe!, de Darren Aronofsky e na penumbra de Sinédoc, Nova Iorque, o seu primeiro filme...
Com um formalismo singular, Tudo Acaba Agora é um convite para um jantar filosófico daqueles cuja ementa é uma oportunidade para meditar sobre o sentido inverso da vida e de como o tempo nos desfaz. Tem um estofo estético que joga com papéis de parede floreados, neve noturna e um ratio (4.3) de ecrã invulgar. Trata-se de um universo estético de uma beleza que paralisa, quase em modo de pequeno mundo secreto, em que um corredor de um liceu e uma gelataria de autoestrada podem ser cenários para uma construção cénica lindíssima. Charlie Kaufman terá feito um dos mais desafiantes filmes dos últimos anos do cinema americano e onde a miséria humana é tão lúdica como a carga intelectual pesada. Quem somos, para onde vamos com a desconcertante bicada de um autor único no panorama americano. Salve-se quem puder...
**** (Muito Bom)