O espírito das sessões de Cineclube de Terror no Nimas
Um jovem bate à porta do pai da namorada com um martelo escondido atrás das costas. Eles não se conhecem, mas é óbvio que vai haver sangue. Enquanto o clima não descamba, os dois trocam olhares analíticos e estabelece-se um diálogo cauteloso, qual western sem poeira: de um lado, o homem de família, polícia corrupto, do outro, o rapaz com o símbolo do Batman na camisola a tentar controlar os sinais de nervosismo que vão denunciando o teor da sua presença naquela sala de estar acolhedora, revestida com um papel de parede que nos podia situar no registo adocicado de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, mas com o humor negro de Delicatessen... Este é o início de Mas Porque é que Não Morres?! (19h30), uma comédia sangrenta que a certa altura faz desvios por caminhos do thriller, com outras duas personagens - um colega e amigo do polícia, e a filha deste último - cujos motivos alimentam a narrativa com flashbacks fora de portas. Nesta primeira longa-metragem, encerrada dentro de quatro paredes, Kirill Sokolov brinca com quase tudo o que tem disponível à frente da câmara (pode ser uma televisão ou um minúsculo gancho de cabelo), mas é pela linguagem visual e banda sonora impositivas que se mede a temperatura da violência prestes a escalar. Quando a coisa descamba, é um fartote de arremessos, zooms e câmara lenta.
Porquê a escolha deste filme de estreia de um realizador russo para assinalar o arranque da parceria entre o MOTELX e o Cinema Medeia Nimas? "Trata-se de um vencedor do Prémio Méliès d"Argent para a competição MOTELX/Melhor Longa Europeia, e provavelmente o mais festivo e apropriado para inaugurar esta colaboração", disse ao DN João Monteiro, um dos diretores do festival lisboeta, fazendo questão de reforçar o toque de atualidade: "Acaba por ser uma feliz coincidência tratar-se de um filme russo, que naturalmente reflete a sociedade do seu país, através do confinamento da ação num apartamento com poucas personagens, numa altura em que a Rússia de Putin tem estado constantemente nas bocas do mundo."
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A verdade é que Why Don"t You Just Die! tem o traço inventivo e a energia ideal para chamar a atenção. Troca o terror feito de sustos pelo chorrilho sanguinário à Tarantino (com as devidas distâncias de qualidade de escrita), e transforma uma premissa simples num conto tresloucado sobre a ganância, com um alegado caso de abuso sexual à mistura e uma mala cheia de dinheiro a acenar a desgraça; esta que de resto se pode antecipar pela epígrafe roubada ao escritor irlandês de alma satírica Flann O"Brien: "Ele não viveu o suficiente para descobrir quem era o vencedor". Só não se sabe quão à letra vai ser levada esta ideia de "não estar vivo para ver."
O tingir de vermelho é de tal modo uma obsessão de Sokolov que tendemos a olhar para as peças de roupa não manchadas como território por explorar e sinal de narrativa ainda com pano para mangas. O que pode correr mal depois de uns ossinhos partidos, uma perna furada por um berbequim e 17 minutos de paragem cardíaca? Há um jogo de requinte grotesco que segura a estrutura de uma história bem engendrada dentro da comédia violenta e de um certo classicismo noir, com direito também a um duelo de velho oeste. Mas, de novo, o que Sokolov quer é mostrar a articulação da câmara dentro do cenário, afirmar um estilo e alguns maneirismos de bom aluno (já com ganas), deixar margem para a surpresa e agarrar o espectador pela mesma curiosidade que move um leitor de policiais, neste caso, com um enredo que experimenta vários ângulos para justificar uma bizarra reunião de família.
Mas Porque é que Não Morres?! começa assim um conceito de programação regular no cinema que, em Lisboa, mais se tem destacado no trabalho de diversidade da oferta, com propostas ora clássicas ora provocadoras, mas sempre refrescantes e a apontar a agulha ao que importa descobrir, numa altura em que repensar a lógica da exibição é lutar, com as armas certas, pela sobrevivência do ritual coletivo da sala escura. Da parte do festival, o que se pretende, segundo João Monteiro, "é fazer sessões sempre diferentes e inesperadas, recuperando o espírito das sessões do Cineclube de Terror de Lisboa no saudoso King Triplex. Para isso contamos com outros filmes exibidos e premiados no MOTELX, sessões especiais de curtas internacionais e nacionais organizadas por temáticas, sessões de aniversário de clássicos do terror, e outras ideias que vão surgindo com o decorrer desta parceria." Por agora, é com uma rica salada russa que se prepara o estômago.
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