Recomendei com entusiasmo este O Deus das Moscas na versão novela gráfica de Aimée de Jongh à minha filha adolescente, tal como lhe sugeri antes a leitura do romance de William Golding que inspirou a desenhadora neerlandesa. Mas não o fiz por pensar que a aventura de um grupo de miúdos numa ilha deserta se trata de literatura juvenil, mas sim por ser um extraordinário livro. E falo tanto da versão BD como do romance, até porque o traço de De Jongh conseguiu interpretar com genialidade a história criada pelo escritor inglês, indo a autora ao ponto de, na versão inglesa, ter recorrido exclusivamente a trechos do texto original, como explica numa nota no final desta edição da ASA. .Conheci eu também esta história sobre Ralph, Jack e Piggy (as personagens principais) quando estava mesmo no final da minha adolescência, mas de primeiro através de um filme realizado por Harry Hook em 1990, que muitos dizem fazer fraca figura quando comparado com uma versão de O Deus das Moscas datada de 1963 e realizada por Peter Brook. A minha memória do filme é de inocência e selvajaria, ou, melhor, do contraste entre ambas. Sem querer falar demasiado sobre a história criada por Golding, posso tentar resumir que um acidente de avião deixa um grupo de miúdos ingleses - alguns no início da adolescência, outros ainda muito crianças - sozinhos numa ilha deserta, e que pouco a pouco as regras de convivência social, a humanidade mais básica, vão desaparecendo. E desaparecem não por causa de um ambiente verdadeiramente hostil (a ilha não tem animais perigosos, possíveis predadores de humanos), mas sim por culpa dos próprios miúdos. De uns bem mais do que os outros, admita-se..Quando refiro três personagens principais - e depois de ver o filme há mais de 30 anos, acabei então por ler o romance, que reli recentemente e daí a minha especial curiosidade sobre esta versão desenhada sobre a qual agora escrevo - é porque penso que Ralph, Jack e Piggy sintetizam muito o que todos podemos ser, como personalidade, mas também fruto das circunstâncias, no caso crianças numa ilha deserta na ausência total de adultos, presume-se que mortos na queda do avião que dá início à história criada por Golding. Os três são miúdos no início da adolescência, mas de resto pouco os une e depressa tudo os divide, nomeadamente Ralph e Piggy de Jack. .O Deus das MoscasAimée de Jongh (a partir da obra de William Golding)ASA344 páginas.Ralph é um líder natural, bem intencionado e consciente de que as regras são essenciais para a sobrevivência do pequeno grupo, até que alguém os venha salvar, e daí a importância da fogueira que acendem graças aos óculos de Piggy. Já Piggy, o gordinho que toda a vida foi gozado na escola, é o sábio que serve de apoio a Ralph, um chefe que lhe reconhece a inteligência e faz dele uma espécie de braço-direito. Já Jack, também com personalidade de líder, deixa-se consumir pelo poder e na verdade vê esse poder transformá-lo completamente, ao ponto de o pacato miúdo que antes andava num colégio, habituado a respeitar todas as regras e mais algumas, passa a ser um caçador, inebriado pela violência. O sangue derramado começa por ser o de uns porcos selvagens, talvez javalis, que vivem na floresta do interior da ilha, até que também há sangue humano derramado. Uma primeira morte cheia de contornos horríveis que não serve para emendar comportamentos do grupo, talvez o contrário até..Os desenhos de De Jongh são de grande força. Mostram-nos os miúdos, de início quase uns anjos perdidos num paraíso de areia e mar. Até há tempo para um bem-disposto Ralph dar um mergulho e desafiar o tímido Piggy. Depois de um período de cooperação, o que vemos é o início da tal selvajaria. Sempre com grande expressividade, as pessoas, a paisagem e a violência misturam-se nos desenhos da artista neerlandesa. É uma leitura arrebatadora. E se vale por si só esta versão em novela gráfica de O Deus das Moscas, aconselho a quem o ler que não prescinda do romance de Golding, um livrinho pequeno, que tem em Portugal pelo menos uma edição da Vega de 1997 e outra da Leya de 2011 (na edição brasileira o livro foi traduzido como O Senhor das Moscas, pois o título original Lord of the Flies é dúbio - em francês foi curiosamente traduzido como Sa Majesté des Mouches)..Golding, nascido em 1911 e que morreu com 82 anos, recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1983, quase três décadas depois da publicação de O Deus das Moscas (o desenho de De Jongh que nos revela o porquê do título é impressionante). O livro tinha como primeiro título Strangers from Within e não agradou aos editores da Faber & Faber, mas nova leitura deu-lhe uma segunda oportunidade e foi lançado em 1954 já como Lord of the Flies (uma alusão ao demónio Belzebu, que surge na Bíblia), tornando-se um grande sucesso. .Este livro de estreia a contestar o mito rousseauniano do bom selvagem marcou a carreira de Golding, muito influenciada pela sua experiência na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial, mas não deve deixar esquecer que escreveu muitos outros livros, como Ritos de Passagem, que ganhou o Prémio Booker em 1980 e foi editado em Portugal pela Difel em 1990..De Jongh, nascida em 1988, confessa ter também lido o livro de Golding na adolescência, e que este lhe disse muito “pessoalmente”. Jovem mas já cheia de prémios, a neerlandesa viu a ASA publicar há meses a novela gráfica Dias de Areia, que gera natural curiosidade a quem gostou muito deste O Deus das Moscas.