Ao chegar à sua 19ª edição, o LEFFEST – Lisbon Film Festival mantém-se fiel ao empenho de dar a ver alguns dos títulos marcantes do ano, sem secundarizar o gosto de reencontrar memórias capazes de nos ajudar a compreender melhor os ziguezagues do cinema e da sua história — em boa verdade, das suas histórias. A partir de hoje, até ao dia 16, o certame dirigido por Paulo Branco vai apresentar a sua programação em várias salas de cinema de Lisboa — Nimas, São Jorge e Amoreiras — e ainda na Culturgest, no Teatro do Bairro e na Galeria ZDB (com a exposição colectiva “P857”, pelo Dahaleez Collective); terá ainda sessões na Amadora, no Cineteatro D. João V e no Auditório dos Recreios da Amadora.Alguns dos maiores trunfos do festival são produções que se foram destacando ao longo do ano, não sendo abusivo pensar que algumas delas estarão em destaque na temporada dos prémios que está quase a começar (prolongando-se, como é tradição, até à entrega dos Óscares, a 15 de março de 2026). Destaque obrigatório vai para Father Mother Sister Brother, do americano Jim Jarmusch, consagrado com o Leão de Ouro de Veneza, um dos títulos da seleção oficial extra-competição. Aí será possível descobrir também, por exemplo, Dean Man’s Wire, do americano Gus Van Sant, The Wizard of the Kremlin, do francês Olivier Assayas, e ainda a novíssima realização de João Botelho, As Meninas Exemplares, a partir da obra da Condessa de Ségur. .Na competição, em estreia europeia, estará Where to Land, do americano Hal Hartley, ele que é um dos homenageados com uma retrospetiva de uma dúzia de filmes. Também a competir para a principal distinção a atribuir pelo júri oficial (Grande Prémio Nos) estarão, entre outros, Blue Moon, de Richard Linklater, que em Berlim valeu um prémio de interpretação secundária a Andrew Scott, Silent Friend, da húngara Ildikó Enyedi, e The Sun Rises on Us All, do chinês Cai Shangjun.Maio de 68 & etc.Muitos destes filmes, porventura todos eles, serão vistos através de alguma relação, direta ou implícita, com as atribulações do mundo contemporâneo — afinal, o que está em jogo é a tensão inevitável entre as convulsões coletivas e os destinos individuais. Daí que faça todo o sentido que esta edição do LEFFEST questione a ideia de “revolução” — aliás, no plural, já que estamos a falar de uma secção, tão contrastada quanto sedutora, a que foi dado o nome de “Revoluções”.Escusado será dizer que não se trata de uma ilustração “panfletária” do que quer que seja. A apresentação da secção é eloquente e pedagógica: “O cinema sempre teve um impulso para representar a revolução, desde os tempos em que ele próprio era uma invenção destinada a revolucionar a forma como as pessoas se veem a si mesmas e o mundo em redor.” Obviamente não por acaso, algumas memórias remetem-nos para os acontecimentos de Maio de 68, em França, essa “revolução” ou “não-revolução” conforme os olhares e as narrativas. Peça nuclear desta secção de programação será o clássico La Chinoise/O Maoísta, porventura o mais perverso título da filmografia de Jean-Luc Godard. Porquê? Porque o seu génio visionário fê-lo entrar para a história como um retrato da “juventude” de Maio de 68... mas a sua estreia, em Paris, ocorreu a 30 de agosto de 1967. .Seja como for, as ideias, as imagens e os sons de Maio de 68 estarão presentes através de preciosidades como Actua 1, de Philippe Garrel: é um exemplo das muitas curtas-metragens militantes da época, representadas também numa pequena coleção dos chamados Cinétracts. Sem esquecer que, para lá de símbolos incontornáveis como Outubro (1927), de Sergie Eisenstein, ou Terra e Liberdade (1995), de Ken Loach, haverá também raridades como Ice (1970), de Robert Kramer, dos tempos de protesto contra a guerra do Vietname, ou La Commune (Paris 1871) (2000), de Peter Watkins, cineasta recentemente falecido que importa redescobrir. Em resumo: todos os passados cinéfilos ecoam no nosso presente.DEZ FILMES A DESCOBRIREntre novas produções e filmes restaurados, o LEFFEST aposta num cruzamento de referências e memórias — sem esquecer diversas homenagens, uma delas a propósito dos 90 anos do compositor Arvo Pärt.EntroncamentoPedro Cabeleira(Competição)Encontros e desencontros, fidelidades e traições, num universo mais ou menos marginal em que a circulação do dinheiro comanda a lei e a desordem — é mais um título a acrescentar a um cinema português marcado pelo tema obsessivo (ou pela obsessão temática) de um exílio interior de que, neste caso, o Entroncamento é, literalmente, a encruzilhada existencial. Comparando com a anterior longa-metragem de Pedro Cabeleira (Verão Danado, 2017), a digressão narrativa algo arbitrária deu lugar a uma genuína construção de personagens..Miroirs nº 3Christian Petzold(Competição)Com assinatura de um cineasta que gosta de apostar em exercícios de ambíguo realismo, eis um belo melodrama que se vai transfigurando num jogo de fantasmas. Tudo começa com uma estudante de piano que, na sequência de um acidente numa zona campestre, é ajudada por uma mulher que acaba por aceitar que ela descanse na sua casa... Petzold filma a banalidade do quotidiano como uma tragédia à beira de explodir, desse modo celebrando o cinema como pura arte de assombramentos — com a sempre brilhante Paula Beer.HomeboundNeeraj Ghaywan(Descobertas)Foi uma das boas surpresas do último Festival de Cannes (secção Un Certain Regard). Prolongando a subtileza da visão social da sua primeira longa-metragem, Masaan (2015), o indiano Neeraj Ghaywan conta a história atribulada de dois amigos de infância que decidem candidatar-se a um posto na polícia, desse modo esperando superar as limitações materiais da sua existência... A precisão dos detalhes do dia a dia, combinada com a riqueza dos elementos psicológicos, gera uma narrativa a meio caminho entre o desespero e a esperança..LagunaSharunas Bartas(Grandes Mestres)Revelado em Portugal no Fantasporto de 1992 através da sua primeira longa-metragem, Três Dias, a obra do lituano Sharunas Bartas continua a ser um dos tesouros escondidos de um cinema europeu em que, justamente, a Europa reaparece sempre como paisagem cruel ou mapa imaginário. Ironicamente, ou talvez não, este novo filme anuncia-se como uma jornada de luto de uma família em cenários da costa mexicana do Pacífico. Resta saber que enigmas espirituais estarão desta vez guardados nas matérias filmadas — a descobrir, sem hesitação.O Agente SecretoKleber Mendonça Filho(Homenagem Wagner Moura)Wagner Moura, por certo um dos actores mais carismáticos (e também mais internacionais) da actual produção brasileira estará presente para acompanhar as sessões desta secção — completam-na Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz, e Marighella (2019), estreia na realização do próprio actor. Entretanto, O Agente Secreto também já está nas salas de todo o país: uma revisitação brilhante dos tempos da ditadura militar no Brasil, com a política a ser revelada como uma paradoxal força anímica, secreta e intimista.Kansas CityRobert Altman(Homenagem Miranda Richardson)A actriz britânica Miranda Richardson também se desloca a Lisboa para acompanhar a revisitação de alguns títulos emblemáticos da sua longa e multifacetada filmografia. Neste caso, será talvez o momento de reavaliar um dos títulos da fase final de Robert Altman, produzido em 1996, e tanto mais quanto este retrato da sua cidade, na década de 1930, em plena Depressão, cruza com elegância a tradição do filme de gangsters e as ambiências jazzísticas. No elenco estão também Jennifer Jason Leigh e Harry Belafonte.AgostoJorge Silva Melo(Homenagem Isabel Ruth)Mais um filme que conta com a presença da actriz homenageada, Isabel Ruth, figura radiosa de várias décadas do cinema português — Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, também surge nesta secção —, numa galeria de filmes de muitos e sugestivos contrastes dramáticos. No caso de Agosto, produção de 1988 centrada numas férias vividas na Arrábida, corria o ano de 1964, podemos redescobrir o gosto paradoxal de Jorge Silva Melo — algures entre a teatralidade dos comportamentos sociais e o enigma dos desejos de cada personagem.ExileRithy Pahn(Exílios)É o título certo para simbolizar uma secção em que as vivências de exilados surgem em registos muito variados, da crueza documental à mais pura derivação ficcional (Alain Resnais e Andrei Tarkovsky são alguns dos autores representados). O filme do cambodjano Rithy Panh, datado de 2016, é tanto mais revelador dessa pluralidade quanto combina os materiais de arquivo com inesperadas manipulações de imagem (incluindo alguns efeitos de animação) para reorganizar as memórias trágicas da ditadura dos Khmers Vermelhos.Arvo Pärt | Robert WilsonGünter Ateln(Homenagem Arvo Pärt)A celebração dos 90 anos do compositor estónio Arvo Pärt faz-se com música, com um concerto do GGG Trio, e também com filmes. Este documentário (subtítulo:“O Paraíso Perdido”) teve um impacto muito especial na altura do seu lançamento (2015), já que Pärt sempre resistiu a ser filmado, quer no seu trabalho, quer nos espaços familiares. Na companhia do encenador Robert Wilson, acompanhamos o processo criativo de Adam’s Passion, com Pärt a dizer que a sua música é “como a luz branca que contém todas as cores”.O CarteiristaRobert Bresson(Memória do Cinema)À semelhança dos grandes festivais europeus (Berlim, Cannes, Veneza), o LEFFEST aposta também na redescoberta de filmes marcantes, através de cópias restauradas. Este Pickpocket surgiu em 1959, mas, insolitamente, quase nunca é situado em paralelo com a Nouvelle Vague que estava a emergir. Há uma boa razão para isso: Bresson é um asceta, solitário e intransigente, com uma filmografia que começara já há mais de uma década — neste caso, o calvário moral de um carteirista surge-nos como uma pura tragédia espiritual..Kleber Mendonça Filho: “O Brasil possui uma força poética feita de sentimentos e espiritualidade”